Será vida viver na praia, lavar-se com água da canalização rota, 

ter mesa posta no contentor do lixo?


Lemos no "Expresso" que Luanda está sem água vai para onze dias. E já lêramos a título "Água dos esgotos abastece Luanda". Nicole Guardiola fez as contas, e é precisco contar 60 contos para comprar mil litros de água - "uma fortuna ao alcance de poucos privilegiados". A maioria dos luandenses "não tem meios para comprar mais do que um garrafão de cinco litros", que fica por 20 milhões de kuanzas, a oitava parte de um salário médio. E ficamos sabedores que os meninos de rua entraram no negócio da água: "Os meninos da rua, que há muito descobriram a maneira de tirar água do grande colector de esgotos da Marginal para alimentar o seu negócio de lavagem de automóveis, reconverteram-se em aguadeiros. De manhã e ao cair da tarde, junto de cada tampa de esgoto, dezenas de mulheres e crianças esperam pacientemente pela sua vez para encher baldes, bidões, garrafões, de um líquido cor de ferrugem. Felizmente, chove todas as noites e o colector é actualmente um rio subterrâneo que arrasta as águas pluviais, que diluem o habitual conteúdo, um caldo de incubação ideal para o desenvolvimento de mocróbios, bacilos e outros inimigos da saúde".

Meninos da rua que já víramos tratando de recolher água numa praceta pontuada por um cartaz pleno de ironia: "LUANDA LIMPA LUANDA LINDA". Outros, mais "rapazes de rua" que meninos, aproveitavam a água que jorrava de um cano roto na rua fronteira ao "Barracuda", para uma sessão de "lava-pés", também pernas e até pescoço.

Voltamos ao "Expresso" para saber que "Luanda continua a ser um paiol pronto a explodir". E entretanto..."Entretanto, os governantes procuram manter uma aparência de normalidade, entre explicações e promessas em que ninguém acredita e medidas avulsas para aliviar a tensão. Os sapatos e os carros reluzentes da nomenklatura desafiam a lama e o pó das ruas. Num dos salões do Hotel Meridien, a primeira dama Ana Paula dos Santos, e dezenas de mulheres da alta sociedade luandense assistiram há dias à passagem de modelos da estilista portuguesa Maria Armanda, que tem uma boutique na cidade. Bonitos vestidos, apresentados com profissionalismo por elegantes manequins formadas na escola local..."

Não sabemos se no dia da passagem de modelos, o homem que fotografámos em Janeiro, com mesa posta num contentor do lixo, ainda continuava a comer do lixo, e se teria mudado de contentor. Pelas areias da praia da Ilha de Luanda devem continuar a viver centenas de angolanos sem abrigo, velhos e putos desafiando a imaginação do jornalista. Como chamar à armação de lata e arame que circundava a esteira onde um luandense dormia, na praia? Um T1?, faria campismo na praia? E como as armações são muitas, pela areia fora, chamar-se-á a tudo aquilo um bairro, uma favela? Tudo junto, por atacado, chama-se miséria, desgraçada miséria. Nicole Guardiola encerra o seu texto dizendo que "entre festas e funerais, a vida continua". Mas será vida viver na praia, lavar-se com água da canalização rota, ter mesa posta no contentor do lixo?

Texto publicado no Jornal da Lousã

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