Cemitério do Alto das Cruzes de Luanda


Já não há jarras vidradas no cemitério do Alto das Cruzes. Mas há latas de Coca-Cola segurando flores murchas. Porque "a água suja do imperialismo" foi slogan que já finou, pazes feitas com os yankees. As sepulturas estão abertas, muitas delas, os jazigos também, os vitrais são cacos de vitrais. Mão carinhosa juntou os pedaços de mármore de uma lápide, para nos curvarmos à memória de José de Abreu, nascido em 1953, falecido em 84. Outras pedras, mais robustas, aguentam-se de pé, segurando letras que o tempo vai carcomendo. Letras que nos dizem estar por ali sepultado Augusto César Scarlatti, "depois de 36 annos de aturado trabalho em África"; que por ali "repouzão os restos mortais do Illustríssimo Excelentíssimo Bispo desta diocese d'Angola e Congo, D. Manoel de Santa Rita e Barros, que qual metioro passou entre nós". Lápides dos "paizinhos" com eterna saudade e devoção do Nequinhas, nascido em Lisboa, e que a desdita haveria de mandar para o cemitério do Alto das Cruzes ao virar dos dez anos. Pedra dura, a que aguentou mais de um século sinalizando as "sinzas de Innocencio Matoso d'Andrade Câmara", filho legítimo de... e de..., e que foi casado com... e em segundas núpcias com... A "seus inconsoláveis filhos" ainda sobrou pedra para lembrarem "os altos cargos exercidos nesta província onde nascera". Pedra dura, à memória de Avelino da Costa e Silva, nascido em Margarida, segundo a lápide, Margaride de seu nome verdadeiro, concelho de Felgueiras. Na tumba, roubaram-lhe um ano de vida, a estar correcto o assento de nascimento no registo civil da terra-mãe. Registaram-no como vivo em 1899; quem o enterrou em 1940, enterrou-o como nascido em 1900. Pedras duras, fingindo sinalizar corpos onde, quantas vezes, já só existem buracos. E quando tapados, enganarão as lágrimas. O guarda do cemitério assente que os corpos por ali enterrados são já outros. E não há dinheiro para lápides a estrear. Mais barato lapidar a página de "anúncios classificados" do "Jornal de Angola", que não esquece a menção "Publicidade", para uma página inteira de necrologia. "Foi precisamente no dia 7/12/94 que nos fizeste o último adeus físico e a luz do nosso sector apagou-se, não contávamos, partiste tão cedo..." "Eva querida, irmã amiga, mãe, esposa Ñ namorada eterna; hoje é dia dos teus anos; lembramo-nos dos momentos de convivência, que neste dia não temos" "Ó pai! o vazio por ti deixado..." "Recordo-te mais quando os nossos filhos estão doentes..." No jornal podem chorar-se mais letras por menos kwanzas. No Cemitério do Alto das Cruzes de Luanda não há lápides novas, há covas a cemitério aberto, lixo que um só guarda não consegue limpar, há uma carreta empanada, e jarras de coca-cola. E um guarda orgulhoso de guardar o "melhor cemitério de Luanda"...

Texto publicado no Jornal de Coimbra

[Ela] [Putos] [Sandy] [Viver na praia] [1001] [Primeira página]