Viva a Liberdade! Mas vocês a pé e eu de carro!

Capítulo II           Página 3

-- O tal de Paulino arriava-lhes forte e feio, não era de meias medidas, o homem, pois não, professor? Aquilo é que ele defendia o povo. Desses jornalistas é que eu gosto...

-- Se tu não lês jornais, Veríssimo duma figa, nem gostas desses nem de nenhuns.

-- Não leio porque estão muito caros. Mas oiço as notícias no rádio da aparelhagem, o que é que julgas? E olha que pouco põem o povo a falar. É só manistros, e mais manistros...

-- E na televisão a mesma coisa. Olha que nunca s'alembraram de vir saber das minhas férias, das férias dos pobres. É só os que jogam golf, os que vão para a praia no Algarve e nas Caraívas, tudo à grande e à francesa. Então aquele de Deus Pinheiro está em todas!

-- Havia de ser giro vir cá a gaja da televisão p'ra fazer uma notícia das nossas férias. O Pimpão a sachar as batatas, o João da Neta de calções de banho a apanhar banhos de sol enquanto compõe o telhado da casa; o Zé Cristão passa umas férias que são fogo, todo o Verão na apaga dos incêndios. Veja amanhã no Clube Zip, as férias do povo. Ganda pinta, não havia de ser, professor?

-- De certa forma tenho que te dar razão, Vanderlei. Mas olha que o povo nunca como agora teve espaço nas televisões. É raro o programa que não chame gente do povo para a plateia, e nalguns casos até ajudam os mais pobres, descobrindo familiares que já não viam há muitos anos.

-- É uma coisa que sempre me fez cá uma grande estranheza. É que só os pobres é que perdem o rasto à família. Nunca lá vi um bem-posto, seja ministro ou director da fábrica, à precura do filho, ou do tio que foi para o Brasil. Mas deixemos a porcaria da televisão, e vamos ao que interessa. O professor tem aí mais folhas, que eu já vi. Há bocadito, quando foi à casa de banho, até dei uma piscadela num escrito que falava dos que roubavam a honra às filhas dos pobres. Esse deve ser picante!

-- Estás a puxar a coisa para a malandrice. Esse texto é uma espécie de hino à gesta popular, um apelo à subversão do povo adormecido contra aqueles que o oprimiam. Uma escrita forte, como manda que sejam escritos todos os textos panfletários. É que o povo anda a maioria das vezes adormecido, e é preciso gritar-lhe com força, para ver se acorda. Até me emociono quando o leio. Reparem nesta parte:

'-- Pois vivem, vivem muito illudidos. Pobre Povo! Como eles manteem e exploram a vossa ignorancia e a vossa miséria á sombra da qual medram e engrossam sem nada ou quasi nada fazerem, enquanto vós de sol a sol trabalhaes, ao vento, á chuva, ao frio, e andaes rotos e cheios de fome, e andaes cheios de fadiga, arruinando a vossa saude e a das vossas mulheres e a dos vossos filhos, a tirar da terra o sustento dos mandriões. Dos mandriões que ainda em cima vos escorraçam, vos corrompem a consciência, vos roubam a honra das vossas filhas -- cá está a tal parte de que falava o Pimpão -- , vos sugam o sangue dos vossos filhos, a quem obrigam a pegar em armas, não para defender a pátria, mas para abafar a voz daquelles que se erguem a proclamar e a defender os direitos do Povo, deste bom povo portuguez!' (nota 8) Ele às vezes escrevia 'Povo' com maiúsculas, sinal do respeito que tinha pelas gentes mais humildes...

-- E está muito bem feito, na escola também me ensinaram a escrever Pátria com letra grande, e se o povo é que faz a pátria, hão-de comer todos pela mesma letra!

-- Terás a tua razão, Veríssimo, não ta nego. Se me dão licença, continuemos a leitura, é só mais um bocadinho...

'Ah! como vós todos, se soubésseis os vossos direitos e conhecesseis a vossa força, vos juntarieis e erguerieis a voz, que retumbando de valle em valle, ecoando de serra em serra, tonante como o trovão, forte como o vento faria tremer toda essa alcateia que vos suga o sangue e que atterrados procurariam esconder-se nas profundezas das cavernas! E então lhe bradarieis:

-- Aproximem-se cobardes! Não tenham receio que não vos fazemos mal porque nós não somos cruéis e vingativos como vós. Só queremos que trabalhem juntamente comnosco, que todos sejamos eguaes, livres e vivamos como irmãos!

--Diz muito bem, bradaram em coro e enthusiasmados todos os presentes.

-- Mas não é só palavras, amigos, que se querem. O que de mais se precisa é de obras. Unamo-nos todos os que vivemos escravisados, todos aquelles que são honestos e que teem amor da patria e da humanidade e façamos valer os nossos direitos. Mas quanto mais cedo melhor, porque se demorar pode ser já tarde quando acordarmos'.

Cá está o cronista a puxar pelo povo, para que se sublevassem, para derrubarem a monarquia. Não o diz de forma directa, mas é isso que se sente. Engraçado que este texto veio publicado a 6 de Setembro de 1910, um mês menos um dia da implantação da República. Até parece que a exortação de Paulino foi ouvida! (nota 9)

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