Viva a Liberdade! Mas vocês a pé e eu de carro!

Capítulo II           Primeira Página

Na barbearia, a 'porca da política' ficava sempre com as orelhas a arder.


-- Então hoje trouxe-nos mais algum daqueles discursos, Ti Vergílio?

-- Trouxe, sim senhor. Aproveitei a deixa de ontem, dos votos em troca de qualquer coisinha... ui, sobre isso tenho pra lá uma rima de 'serões' (nota 3). Sabem que o tal jornal, apesar de não se assumir oficialmente como republicano, o era na prática. Aproveitavam tudo para bater forte e feio na monarquia, acusavam os reis e os seus apoiantes de brincarem com a ignorância do povo. Por exemplo, este trecho aqui:

'Em julho de 1821 chegava ao Tejo o D. João VI. As ruas de Lisboa estavam cheias de flores e de perfumes, fez-se um rico palio de seda matizado de ouro e prata para o bicho ir ouvir um Te Deum á sé...

-- E tanta coisa para receber um homem! exclamou o João do Oiteiro.

-- E que demais a mais havia fugido do seu paiz, quando elle estava em perigo, disse o Manuel do Fundo.

-- Pois os reis, continuou o sr. Antonio, foram sempre uns individuos que sómente serviam para sugar e martirisar o Povo. Quando D. João VI atravessava as ruas de Lisboa, o Povo não se cançava de gritar vivas a el-rei, á Constituição e á Liberdade. 'Viva a Liberdade! viva!', dizia o rei repimpado no seu luxuoso carro; 'viva a Liberdade! mas vocês a pé e eu de carro!'

-- Ai o maroto! exclamou indignado o Francisco da Glória.

-- A constituição estava concluida em 1822, mas devia ter sido dada á guarda dum cidadão sério, honrado e intelligente, e não a um pultrão como D. João VI, que alem disso tinha tido por mulher uma creatura sem vergonha, que até um cocheiro tinha tido por amante, que tinha dois filhos, Pedro e Miguel, que não iam com a opinião do pae, sendo o ultimo bebado o um desordeiro'. (nota 4)

Ou este aqui: 'Hoje em Portugal, os governantes ainda julgam que o povo não passa dum rebanho de carneiros que elles conduzem como muito bem querem, e por mal dos nossos pecados, quasi que assim é, porque nós tudo toleramos'. (nota 5) Este é de 26 de Março de 1910. Oiçam este agora, sobre as eleições. Foi publicado em finais de Julho, a pouco menos de dois meses do derrube da monarquia:

'-- Então, sr. Antoninho, começou o João Russo, vamos ter eleições brevemente.

-- Dizem que sim. No dia 28 de Agosto.

-- Mas para que fazem elles eleições, se elles arranjam só os deputados que querem?! Diz muito bem. As eleições no nosso paiz é sempre uma coisa vergonhosa. O Povo vai votar, mas na sua maior parte não sabe o que vai fazer. Vai ali pôr na urna um papelinho que um político lhe deu. Nem sequer conhece quem é o deputado, nem vai por sua própria vontade. Vai com o sr. Fulano porque lhe deve obrigações e porque como precisa delle, tem de lhe fazer a vontade quando não o sr. Fulano vinga-se. E depois dizem que os deputados são os representantes do Povo, e eleitos por sua livre vontade.

-- Até parece isso uma coisa de escárneo, disse o João do Oiteiro'... (nota 6)

-- Tal e qual como agora. Eu lá sei o nome dos deputados em que votei!

-- Não sabes porque não queres, Veríssimo, que agora as coisas são diferentes do antigamente. Agora há democracia, há liberdade. Podes ir aos comícios, ver os debates na televisão, os tempos de antena...

-- Isso é uma seca, Pimpão. Bem fez a SIC que não os passou nenhuns. Mas ó professor Vergílio, explique-me lá isso melhor da república e da monarquia, que eu já não estou a entender nada. Se eles eram assim tão inimigos, porque é que agora se dão tão bem? O Mário Soares e o Cavaco não foram ao casamento do rei, e o Jorge Sampaio ao baptizado?


A gravura incluída nesta página (óleo sobre tela) é da autoria de Luiza Caetano, e foi concebida especialmente para ilustração do livro e do saite 'No Fastifud da Bernadete'.

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