Fotografia: A Verdade da Mentira? Texto integral |
Toda a fotografia é, por definição,
manipulada desde o "parto".A sua selecção em detrimento de outras, a
colocação na página, as relações provocadas com outras fotos, o jogo com a legenda,
texto e título do artigo de jornal ou revista, tudo contribui para diversificar o
potencial de significações da fotografia utilizada na imprensa.
"Fotografia" - "Recurso
essencial do jornalismo contemporâneo. Uma boa foto pode ser mais expressiva e memorável
que uma excelente reportagem. No jornalismo, o valor informativo é mais importante que a
qualidade técnica de uma foto. São qualidades essenciais do fotojornalismo o ineditismo,
o impacto, a originalidade e a plasticidade" - assim reza o "Manual de
Redacção" do jornal brasileiro"Folha de S.
Paulo".(1)
Sublinhamos: "Uma boa foto pode
ser mais expressiva e memorável que uma excelente reportagem". Dito por outras
palavras, pode valer mais que o texto que a acompanha. Do estatuto secundário de
ilustradora do texto-nobre, a foto conquistou pergaminhos de primazia em relação à
palavra impressa (2). A descoberta do poder da fotografia - descoberta feita há muito mas
sublimada na última década pelo mimetismo com a televisão -, a descoberta desse poder
estará na origem de muitas das derrapagens que se vão registando no campo nobre do
fotojornalismo. Derrapagens escudadas na aura que a fotografia carrega, por ter ela o
poder imenso de representar a realidade com tal fidelidade que nunca somos tentados a
dizer que a foto mente. A foto é sinal de verdade, seguro de vida do jornalista, de cujo
texto, esse sim, os leitores já poderão desconfiar. Da foto (da imagem) ninguém duvida,
verdade roubada ao real, transfer da verdade para o papel ou para o écran.
No entanto, sucedem-se em catadupa os
exemplos de fraudes, manipulações, em gama que rivaliza na sua diversidade com as
combinações possíveis das cores do arco-íris. Há manipulações inocentes, como
aconteceu com a foto do jovem negro com a garrafa (3). Um editor gráfico da "France 2" resolveu apagar, da fotografia, a garrafa
exibida pelo jovem negro assassinado pela polícia. Intenção de evitar conotações
malsãs, a manipulação virou-se contra o editor - quem decidirá mais tarde que uma
manipulação é boa ou perversa? Fraude com todas as letras praticaram-na os jornais
franceses que publicaram foto de Djamel Zitouni, chefe do GIA argelino alegadamente
considerado como o mentor dos vários atentados à bomba que têm aterrorizado Paris.
Zitouni não usava barba, mas como terrorista "que se preze" carece de
ser barbudo, algumas publicações francesas não hesitaram em publicar uma foto de um
familiar de Zitouni, esse sim com barba bem visível. (4)
A manipulação das fotografias de
imprensa não é moda do final do século, apesar da técnica digital ter tornado tais
manipulações possíveis de realizar pelo mais comum dos mortais. Edgar Roskis (5) lembra
a reportagem ficcionada de "L'Illustration", nos idos de 1905. Sob o título
"Et si le Louvre brûlait", surgia fotomontagem com o célebre museu em chamas,
e onde nem sequer faltava uma plêiade de bombeiros afadigando-se no combate às chamas.
Phiplippe Maupetit lembra, por seu turno, a responsabilidade dos dadaístas na difusão da
fotomontagem, nos idos de 1920 (6). O "Orange
County Register", jornal da Califórnia que recebeu o Prémio Pulitzer pela sua
cobertura das Olimpíadas de 1984, imprimiu em todas as fotos um céu azul claro e
despoluído. E até mesmo a irrepreensível "National Geographic" não resistiu à
tentação de mudar de lugar uma das grandes pirâmides de Gizé, apenas para que o
inamovível monumento se enquadrasse no formato da capa da revista. (7) Edgar Roskis
referencia outros casos do género: o "Figaro
Magazine" "montou" um Concorde no céu de Manhattan, o "Le
Point" fez acompanhar O.J. Simpson de dois advogados, quando na realidade era
acompanhado por apenas um; a "Time"
americana transformou o tanque de revelação digital das suas fotografias em laboratório
de ensaios de coloração epidérmica, ao enegrecer e branquear O.J. Simpson.
Vêm depois os casos de fotografias que
não são truncadas, representam efectivamente o "real" fotografado, só
que este é transformado noutro "real" por intermédio do texto. A
"jovem muçulmana" que ilustrava a reportagem da revista francesa "L'Express" sobre a infiltração dos
islamistas em França, era efectivamente uma top-model contratada pela revista, tendo sido
fotografada com as vestes muçulmanas no próprio estúdio daquela publicação (8).
Noutro caso que recenseámos, nem foi precisa qualquer produção. Bill Clinton foi capa
de um sem número de jornais, pose transbordante de alegria, jornais publicados no dia
seguinte à sua reeleição. Todos os leitores vislumbraram naquela foto uma explosão de
alegria do presidente americano, ao conhecer os resultados que lhe atribuíam a vitória.
Acontece que a foto já era requentada: fora captada aquando de um comício numa
universidade, distribuída dois dias antes pela agência Reuters,
e publicada primeiro por um jornal libanês. O "Le Jour" publicara a foto antes
de Clinton saber se viria ou não a ser reeleito. A foto em si não mentia, era honesta: a
desonestidade partiu de quem a utilizou fraudulentamente, fazendo crer aos leitores que
Clinton reagia aos resultados eleitorais que lhe foram favoráveis.
Neste caso descobriu-se a
manipulação, graças à pesquisa atenta de Daniel Schneiderman e da equipa que o
acompanha no programa televisivo "Arrêt
sur Images" (9). Mas há muitos outros (centenas, milhares?), em que a fraude
não é descoberta. Acontece quando os jornais publicam fotografias de personalidades sem
indicar que se trata de fotos de arquivo, por exemplo; ou até quando reenquadram uma foto
"picada" de outro jornal! O Instituto
Gutenberg, uma instituição brasileira de "media-critics", coloca
questões pertinentes, a propósito da verdade e da mentira das fotografias (10). Começa
por se constatar o sem número de alterações a que uma foto é sujeita, a partir do
momento em que sai das mãos do fotojornalista, para entrar na "fábrica editorial":
"A rotina mostra que existem numerosas razões para se alterar uma foto
jornalística: para corrigir defeitos técnicos; para eliminar material de mau gosto ou
chocante, evitando a ofensa dos sentimentos do público; pelo respeito às leis que
proíbem fotografias de menores em determinadas circunstâncias, obrigando os meios de
comunicação a pôr uma tarja no rosto deles ou a exibir a sua imagem de forma
distorcida; para cortar ou ampliar detalhes, e extirpar da cena factos ou pessoas que nada
têm a ver com a reportagem". Seguem-se as interrogações: "Alguma dessas
razões justifica a alteração manual ou digital de uma fotografia? Supondo que haja um
motivo aceitável, é imperioso informar o público sobre a alteração? Um aviso desses
poderia infundir no público a ideia de que rotineiramente os media retocam ou alteram
fotos? Os jornalistas que se opõem ao retoque ou alteração levam em conta que fotos
são ao mesmo tempo um retrato objectivo da realidade e a visão subjectiva do fotógrafo,
como esses profissionais gostam de sublinhar? Considerando que os textos são
rotineiramente alterados por muitos motivos - acertos gramaticais ou de estilo,
adequação às normas e manuais da empresa de comunicação -, existe diferença entre
retocar ou alterar uma foto e retocar ou alterar um texto original de um repórter?"
Enfim, para além da fraude deliberada
e condenável, notar-se-á uma zona de fronteira entre a manipulação admissível e a
manipulação perversa. E, tal como o fotojornalista não consegue despir-se da sua
subjectividade ao captar imagens, também os delimitadores desta fronteira verterão
juízos subjectivos sobre o admissível e o inadmissível neste capítulo. Valha
sobretudo, então, a honestidade de processos.
N o t a s
1. CD ROM "Folha de S. Paulo". Empresa Folha da Manhã, 1996. Pode consultar-se também em suporte de papel.
2.A nossa experiência como profissionais do jornalismo e do fotojornalismo profissional já nos deu conta, não do óbvio poder da foto, mas da sua imperiosa necessidade, com casos registados de textos que caem (publicação recusada) pelo facto de não ter sido possível conseguir fotos dos protagonistas de uma reportagem. Noutros casos, é a natureza da foto que determina a colocação do texto em local mais ou menos nobre do jornal. Quando não se conseguem fotos com elemento humano, e nos temos de contentar com imagens de um edifício, por exemplo, é certo e seguro que o texto será relegado para página par, menos nobre, como é sabido, que as páginas ímpares.
3. Programa "Arrêt sur Images", da tv francesa "La Cinquième"; emitido aos domingos. Captado em Portugal via satélite.
4. A penúria de imagens sentida pelos jornalistas franceses no que concerne à cobertura dos acontecimentos na Argélia tem levado vários media gauleses a derraparem, quando se trata de conseguir imagens referentes àquele país. O programa televisivo "La Marche du Siècle", da "France 3", difundiu em Novembro de 1994 uma foto invertida, com barbas e bigodes implantados em três pacatos berberes argelinos, transformando-os em extremistas implacáveis. Já o "Dauphiné Libéré" de 13 de Agosto de 1994 ocupava a primeira página com uma foto de muçulmanos a rezarem numa mesquita. A foto era verdadeira, não havia trucagens, mas o título "estragava tudo": "NOVAS AMEAÇAS", assim rezava a manchete daquele periódico, transformando em terroristas os fiéis que rezavam num templo de Marselha.
5. ROSKIS, Edgar. "Images truquées" / "Journalisme et verité". Texto publicado no mensário "Le Monde Diplomatique" de Janeiro de 1995, página 32, a que acedemos via Internet.
6. MAUPETIT, PHILIPPE. Texto "Cadrages, photomontages et détourages", página 174, incluído no livro "LE PHOTOJOURNALISME - Informer en écrivant des photos". Centre de Formation et de de Perfectionnement des Journalistes (CFPJ), Paris, 1993.
7. Texto "Câmera digital é o fim da foto-documento". Instituto Gutenberg.
8. Casos mais graves acontecem quando as imagens servem para reportagens deliberadamente fraudulentas, no seu global. Foi o caso do repórter free-lancer alemão Michael Born, que conseguia reportagens de impacto, vendidas a bom preço às televisões do seu país e da Suiça. Uma das reportagens descia ao sub-mundo dos neonazis alemães, outra mostrava elementos do Ku Klux Klan fazendo o habitual terrorismo com negros, numa floresta dos Estados Unidos. Descobertas as fraudes, pelas quais Born terá facturado 225 mil dólares, foi condenado a quatro anos de cadeia. Surgem ainda outras derrapagens, estas de carácter inofensivo. A leviandade de algumas estações francesas levou-as à emissão de programas sobre um grupo musical do Metro de Paris, "Les Casse Pieds", cujos elementos afirmavam coleccionar objectos tocados por grandes estrelas do show-business, desde uma maçã trincada por uma estrela de cinema à gilette utilizada por Alain Delon. Curioso o facto desta operação do grupo liderado por Emmanuel Layotte se ter seguido a uma outra esparrela do grupo acontecida seis anos antes. As televisões caíram segunda vez...
9. Programa referido na nota 3.
10. Texto "Manipulação digital como técnica jornalística", utilizado no Seminário "Ética na Imprensa - Realidades e Desafios no Brasil". São Paulo- Itu, 17 a 19 de Maio de 1996. Texto a que acedemos via Internet, no saite do Instituto Gutenberg.