Fotoradiografias
Manipulação digital como técnica jornalística*
A cidade de H. é conhecida por sua produção de móveis. Anualmente, uma grande feira atrai compradores de todo o Estado, mas a desse ano tem uma novidade: a Prefeitura uniu-se às empresas e montou um parque de exposições, inaugurado com grande pompa e balões que oscilavam no ar com o logotipo das empresas associadas ao empreendimento. O jornal mais importante da cidade deu ampla cobertura ao assunto e uma foto panorâmica dos balões, em que apareciam os logotipos de algumas empresas, mas, claro, não de todas. Algumas, em primeiro plano, eram facilmente identificadas; de outras via-se parte do nome e em alguns casos, os balões, movidos pelo vento, aglomeraram-se e o leitor não podia saber quem os patrocinava. A foto era belíssima: feita ao entardecer, captou o contraste do céu de outono com as bolas multicoloridas suspensas no ar, mas era claramente um foto jornalística para reportagem sobre um fato que interessava à cidade, inclusive porque a economia local é movida pelas indústrias de móveis e de turismo.
Meses depois, o jornal resolveu fazer um suplemento turístico e muitas - mas não todas - das empresas cujos logos apareciam na foto publicada entraram como anunciantes do caderno. Uma das reportagens do caderno era sobre o parque de exposições e a feira de móveis, e o editor de fotografia escolheu a foto que publicara antes para ilustrar a segunda reportagem. O editor-chefe não gostou. A foto, dizia ele, retratara uma situação específica, que, embora tivesse conotação comercial, era notícia. Se fosse republicada, com o logotipo de empresas, e ainda mais de apenas algumas empresas, poderia causar dúvidas nos leitores - e sugeriu que os logos fossem removidos eletronicamente com a tecnologia de edição digital.
O editor de fotografia, que se considera um repórter fotográfico e um artista ao mesmo tempo, se opôs. Argumentou que se fosse para alterar era melhor não publicar, sob pena de o jornal retocar um fato real de acordo com as suas conveniências, ainda que fossem conveniências supostamente éticas de não fazer propaganda comercial numa reportagem informativa.
O aspecto ético e questões para discussão
1. A rotina mostra que existem numerosas razões para se alterar uma foto jornalística:
a) corrigir defeitos técnicos;
b) eliminar material de mau gosto ou chocante, para evitar a ofensa dos sentimentos do público;
c) respeito a leis que proíbem fotografia de menores em determinadas circunstâncias, obrigando os meios de comunicação a pôr uma tarja no rosto deles ou exibir sua imagem de forma distorcida;
d) cortar ou ampliar detalhes, e extirpar da cena fatos ou pessoas que nada têm a ver com a reportagem.
2. Alguma dessas razões justifica a alteração manual ou digital de uma fotografia ? Supondo que haja um motivo aceitável, é imperioso informar o público sobre a alteração? É de se levar em conta que um aviso desses poderia infundir no público a idéia de que rotineiramente os meios de comunicação retocam ou alteram fotos?
No caso da foto dos parque de exposições, o fato de alguns logotipos serem visíveis comprometia a reutilização da foto numa reportagem que tratava basicamente do mesmo assunto? O fato de os logotipos não serem essenciais à segunda reportagem, como foram à primeira, justificaria a sua eliminação da foto?
3. Os jornalistas que se opõem ao retoque ou alteração levam em conta que fotos são ao mesmo tempo um retrato objetivo da realidade e a visão subjetiva do fotógrafo, como esses profissionais mesmo gostam de sublinhar?
4. Considerando que os textos são rotineiramente alterados por muitos motivos - acertos gramaticais ou de estilo, adequação às normas e manuais da empresa de comunicação -, existe diferença entre retocar ou alterar uma foto e retocar ou alterar (pentear ou reescrever) um texto original de um repórter que foi à rua, presenciou os fatos, entrevistou as fontes e fez um relato do que aconteceu?
*Seminário Ética na Imprensa - Realidades e Desafios no Brasil.São Paulo-Itu, 17 a 19 de Maio de 1996. Centro Internacional de Jornalistas; Instituto de Estudos Avançados da USP; Instituto Gutenberg