Fotoradiografias IX

Sabe o que um fotógrafo faz quando vê um bébé abandonado?

Dinis Manuel Alves*

"Sabe o que um fotógrafo faz quando vê um bébé abandonado? Pica-o porque as fotos de bébés a chorar valem mais um dólar!" O Grande Bernzini, fotógrafo no filme "Repórter Indiscreto"

O "Grande Bernzini" picava os bébés há largas décadas atrás. E que o fizesse hoje, tal prática estuporada não ganharia relevo de monta. Para azar da televisão, é esta que tem os écrans suficientemente largos para arcar com as culpas de tudo o que corre mal pelo cartório. Assumamos então o fado, e falemos de Dona TV, amante de tragédias. A tragédia não é exclusivo da programação mediática. Bem pelo contrário, a informação parece viver cada vez mais da dor e do sofrimento dos outros. Dor que alguns jornalistas empurrados pela voragem da cacha, pela "força do boneco ", tudo fazem para escarrapachar nos écrãns, nas rádios, nos jornais. Basta citar dois exemplos bem portugueses: a morte de duas crianças no Aquapark, em que os pais das crianças chegaram a deslocar-se ao cenário do infausto acontecimento para ali serem filmados; as cruéis perguntas feitas a uma das crianças sobrevivente da tragédia de Meda de Mouros, na qual morreram vários alunos de uma escola primária e a professora. Um repórter perguntava então à criança de 3, 4 anitos: "Sabes o que aconteceu aos teus colegas?" E não descansou enquanto não ouviu a resposta: "MORRERAM...!"

É a "dor da gente" a ganhar estatuto de primeira grandeza na ordem jornalística. Para o docente universitário Mário Mesquita, "a política transforma-se em fait divers, a violência em espectáculo, a narrativização sobrepõe-se ao discurso informativo, a anedota sobreleva a notícia, enquanto os pseudo-acontecimentos proliferam e se entredevoram". Jorge Leitão Ramos mostrava-se esperançado no repórter que conseguisse desviar o olhar... "Eu sei - e é compreensível: qual é o jornalista que não "sofre" pelo incremento do espectáculo no acto de informar? A explosão da alegria, o uivo da tragédia, o perigo, a morte em directo, a sensação de estar a chegar primeiro e ter na mão o saber que milhões estão à espera de conhecer? Por isso, é bom não apedrejar irreflectidamente os que caem em tentação. Mas ainda não perdi a esperança de ver, um dia, num serviço informativo da televisão portuguesa, um operador de câmara que desvie o olhar. Um repórter que, quando vir a lágrima de dor a romper dos olhos de quem está a ser vítima de um drama, não vá lá buscá-la, em "zoom", para fazer da lágrima um grande plano, uma manchete. Um repórter que se retire, que recue, que tenha o pudor de não querer dar a ver o que não deve ser público, o que nenhuma voracidade de notícia autoriza que se banalize: a dor da gente - que não é para sair no telejornal".

O RECEPTOR NO EMISSOR NÃO COBRA CACHET

O receptor penetra assim no emissor para contar as suas desgraças, para pedir ajuda. O media emissor constitui-se então no benfeitor sagrado, na última tábua de salvação do desesperado. Deverá ir para o céu, tal emissor? À cautela, abramos-lhe apenas e tão só uma das portas do purgatório. É que tais programas aliam à conquista de vastas audiências os baixos custos da sua produção. Basta um apresentador, duas cadeiras e por vezes algum público para aplaudir ou se comocionar, e está o programa feito. Um drama que sai mil vezes mais barato que encenar uma qualquer tragédia clássica para a TV. Referindo-se mais concretamente ao panorama audiovisual europeu, Francisco N. Rui Cádima considera "um risco para a identidade cultural europeia - e para a própria indústria audiovisual - o decréscimo que se verifica já na produção própria da quase totalidade das redes europeias, decréscimo que é tanto mais preocupante quanto se regista precisamente face a um aumento substancial do total de horas de emissão". Como resolverão então os programadores este problema das suas grelhas?" - pergunta Rui Cádima, respondendo de seguida: "Simples: importando nomeadamente dos Estados Unidos a preços cerca de 30 vezes inferiores aos custos de produção..., mas para além disso, adoptando a estratégia da repetição frequente de programas e, sobretudo, produzindo o que falta a baixos custos e, necessariamente, com reduzida qualidade ". Ganha o receptor que consegue encontrar o filho ou ser perdoado pela tia por causa de uma arreliante questão em volta duma mesa, e ganha o patrão da estação, que fica com as finanças bastante menos depauperadas. Como a lógica do ganho inclui quase sempre uma perda, quem sai a perder deste panorama é a produção cultural dos media. Dizemos produção cultural, e não modelo cultural, que esse também se preenche com pepineiras.

RECEPTOR-APANHADO E RECEPTOR-REPÓRTER DE BIZARRIAS

A entrada do comum dos receptores na catedra catódica também se faz por outra porta. O cartão de entrada é-nos fornecido pela própria provocação dos media, tentando apanhar-nos nas situações mais insólitas que se possam imaginar. Falamos das várias séries e versões dos "Apanhados", das "Minas e Armadilhas" que alguns não dão conta que despoletam para gozo dos demais. Porque é que as pessoas apanhadas em situações inconfessáveis autorizam a transmissão dos episódios onde são postas a ridículo? Não para demonstrarem ao mundo que o ser humano é falível, que tem defeitos, que mereceria até ser preso por não ter resistido a esta ou aquela tentação. Autorizam a que a sua imagem de cidadão comum passe na TV, porque buscam o estrelato efémero. Melhor um estrelato de segundos que consagração nenhuma. E porque é que às emissões dos "Apanhados" não assiste apenas a família e amigos mais chegados da "vítima"? Também aí funciona o gozo perverso (de perversidade bastante diluída) que nos é dado ao assistirmos às esparrelas em que cidadãos como nós caem. Não é já o deleite pela desgraça e a complementar satisfação pela sua minoração, é aqui o deleite por descobrir que seres comuns como o receptor se deixam cair em esparrelas. Sensação simultânea ao do enchimento do ego do espectador, que logo se apresta a considerar que ele, telespectador, nunca cairia em tal. A reacção imediata de alguns dos apanhados, ao ser-lhes comunicado que foram apanhados, aí está para o demonstrar. E a reacção é: "E eu que jurava que nunca cairia numa situação destas! " Mas será que as esparrelas só devem atingir o cidadão comum? Será suficiente ficar-se por aqui? De forma alguma. A chuva de estrelas na qual os receptores tanto gostam de se banhar também deve deixar esparrelar alguma gotículas. Há então que apanhar as grandes vedetas do futebol, da música, da política, da própria televisão. Surgiram assim "Os Inocentes" no Canal 1 da RTP e o "A Brincar, a Brincar", da SIC. Tão famosos e tão ingénuos. A descoberta da segunda característica nos "deuses" que dão alimento ao imaginário do receptor funciona a favor da amplificação do mito. Descem à terra por serem tão "patos" como nós, descobre-se-lhes humanidade, o que só ajuda a aureolar ainda mais o mito. Descem,para logo subirem mais alto. Mas a televisão não se contenta em tomar a iniciativa da caça ao apanhado. Vai mais além. Deixa que o écrãn se polvilhe dos acidentes caricatos de que são vítimas os receptores, ou aos quais assistem (casos do "Isto Só Vídeo", transmitido pelo Canal 1 da RTP e "Apanhados dos Carretos", que em tempos passou na TVI). O quarto de bébé, a sala de estar, o jardim, o quarto da noiva ganham dignidade mediática desde que albergue alguma queda, algum bolo na cara de alguém, alguma trapalhada. Os receptores transfiguram-se então em operadores de câmara, paparazzi dos incidentes domésticos. Os prémios chorudos oferecidos por alguns destes programas podem deixar mesmo a dúvida se muitos desses "acidentes" não são "improvisos bastante bem preparados" para conquistar o primeiro prémio. E há mesmo quem se não iniba de deixar como "apanhado" a tragédia da sua vida, e da vida dos mais próximos. Estamos a lembrar-nos de um caso acontecido há meses atrás, protagonizado por um indivíduo embriagado que matou a ex-mulher a tiro, suicidando-se posteriormente em frente de uma câmara de vídeo que registou toda a cena... Tivesse-lhe saído em sorte este caso, e James Stewart não careceria de desesperar tanto assim...

"Estamos mergulhados em desespero porque descobrimos que um homem não matou a mulher. Somos dois dos mais terríveis vampiros que conheço. Achas que ficaríamos satisfeitos se a pobre mulher estivesse viva?" Pergunta de James Stewart a Grace Kelly, no filme "A Janela Indiscreta".

*Jornal de Coimbra, 20/08/1997

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