Fotoradiografias V
Uma boa acção |
Dinis Manuel Alves*
Durante a semana a rotina havia imperado, nada de espectacular se havia passado. Mas eis que o telefone soa, a meio do almoço de sábado. Da redacção, pediam-lhe para tirar umas fotos. "Vê lá se bates umas boas chapas para salvarmos a edição de domingo" - e despediram-se. Ele assim fez. A poucos quilómetros de Coimbra, dois veículos ligeiros tinham ficado quase irreconhecíveis, sofrendo dez vezes mais que os ocupantes, cujos ferimentos os obrigaram apenas a uma curta permanência no hospital. O repórter fotográfico escolheu como alvo preferencial o carro que tinha ficado de rodas para o ar. Fotografou-o de todos os ângulos, menos por baixo. Depois pediu a ajuda dos populares sempre prontos a guardar armas à porta de um qualquer infortúnio rodoviário. Os mais corpulentos esfalfaram-se, mas conseguiram colocar o carro na posição original, com as rodas de novo a beijar o chão. Solícitos a um novo apelo do repórter fotográfico, conseguiram empurrá-lo para a berma da estrada. Em uníssono, louvaram o civismo do foto-jornalista, interessado em fazer o seu trabalho, mas também na desobstrução da via. Um caso exemplar de um cidadão que não é capaz de regressar a casa descansado sem ter feito ou mandado fazer a outros uma boa acção. Meio cabisbaixo, agradeceu os louvores. "Não têm que me agradecer, faz parte da minha profissão". E fazia mesmo. É que antes do 25 de Abril, o corte que a censura impunha a um volumoso caudal de notícias, libertava quase sempre bons espaços na primeira página para um acidente digno de registo. E o registo precisava de boas fotos. Com o carro no lugar, o repórter fotográfico pôde voltar descansado à redacção. Os protagonistas do desastre não posariam com igual espectacularidade para a concorrência. "Metam na primeira página, que eu consegui o exclusivo destas fotos!" *Abril, 1991 |