Fotoradiografias VI

Vejo os olhos que viram Lumière

Dinis Manuel Alves*

"Estando eu n' esta phase febril de indagações, fui a Londres precisamente na occasião em que se encontrava aberta uma exposição de photographia onde havia uma secção de provas a côres. Fui vêr, e escusado é dizêl-o; fiquei maravilhado!"

Santos Leitão teve que deslocar-se a Londres, em 1911, para ver e se extasiar com os primeiros autocromos, com a invasão do mundo da cor num feudo até então do preto e branco. Hoje, a Casa da Cultura de Coimbra oferece-nos semelhante deleite, ao pé da porta. Uma viagem em torno de um mundo peculiar, gentes, paisagens e objectos do período que antecedeu a Primeira Guerra Mundial, tudo visto e fotografado pelos primeiros autocromistas, homens inspirados nas correntes pictóricas da época. Ao tempo, a fotografia tentava (a exemplo do que aconteceria mais tarde com o cinema), ganhar estatuto de arte, romper os preconceitos dos vigilantes do templo sempre atentos na tarefa de normalizar o "bébé" de que mal se conheciam ainda as feições: "Nós sabemos perfeitamente que esses trucs que essa apparencia fina e lambida da photographia fazem a admiração e o enthusiasmo de muita gente, mas no meio dos progressos realisados nos ultimos tempos, todos esses expedientes devem ser abandonados" - lia-se ao tempo numa publicação editada em Portugal. Mas Lumière, Duprat, Arloing e outros fizeram ouvidos moucos a tais "críticas delambidas", aprimorando a técnica que abriria as portas ao "real", respondendo às lamúrias de marginalização dos verdes, azuis, rosas, vermelhos, castanhos, amarelos, violetas e demais membros da família arco-íris, que mal compreendia ser o mundo a cores e a fotografia a branco e negro. Os Lumière haviam inventado em 1903 o processo técnico tricrómico, que utilizava como prisma difractor as moléculas da fécula de batata, permitindo obter uma fotografia a cores a partir de uma única imagem. Um procedimento artesanal permitiu uma tiragem dos autocromos que habitualmente eram vistos à transparência como os diapositivos de hoje. A partir de 1907 a produção industrial da placa "autochrome" deu um impulso fantástico à actividade fotográfica, com mais de um milhão de placas fabricadas até 1937, testemunhando o nascimento de uma nova arte em que os pioneiros da fotografia eram ao mesmo tempo artistas e artesãos. A exposição "Les autochromes Lumière et les premiers autochromistes", patente até ao próximo dia 15, oferece-nos ainda uma visão pitoresca e comovedora do mundo da época. Fronteiras fluidas com a pintura, a lembrar a magia de Renoir. Não era sem sentido que Afonso Lopes Vieira escrevia em 1909: "Pela photographia teremos a possibilidade de sermos todos um pouco pintores. Por ella poderemos adquirir a faculdade preciosissima de saber vêr, não com os olhos distrahidos de quasi toda a gente, mas com olhos que amam...". E os olhos que então fotografavam amavam os piqueniques campestres, os rostos das gentes, as flores, as nuvens bojudas e luminosas, e tudo o que mexia. Os olhos que então fotografavam gostavam de sentir o poder de parar, de congelar num instante único cavalos, bicicletas, comboios, automóveis, também o avião. Ducurtyl foi dos primeiros a possuir um automóvel, a aderir ao Automóvel Club de Rhône e a obter uma carta de condução. Morel andou muito cedo de bicicleta e continuou a fazê-lo até ao fim da sua vida, percorrendo uma grande parte da Europa. Entusiasta do cicloturismo, fez a sua viagem de núpcias de bicicleta, foi de bicicleta à Noruega e a Praga. Pétouraud, seu amigo, evocava esta "união da bicicleta e das placas 'autochromes'", chamando-lhe a "ciclocromia". Uma exposição obrigatória para leigos, amantes da fotografia, alunos das escolas da região.

Um dia, há muito tempo, Roland Barthes encontrou uma fotografia do irmão mais novo de Napoleão, Jerôme. E disse então para consigo, espantado: "Vejo os olhos que viram o Imperador". No primeiro piso da Casa da Cultura de Coimbra, também veremos os olhos que viram os irmãos Lumière...

*Março, 1995

FOTORADIOGRAFIAS VII