E tudo isso causado pelos frades! |
Capítulo VII Primeira Página
-- Sempre encontrei o tal 'serão' que respeitava aos padres, neste caso aos jesuítas. O sr. António tinha-se referido já ao rei D. Manuel, que considerava beato demais para o seu gosto. E creio que já vos tinha lido a parte em que um cristão novo se lembrara, para sua má fortuna, de desconfiar dum milagre, o que originou grandes tumultos em Lisboa. Mas o melhor é recuar um bocadinho, senão o 'serão' de hoje perde nexo: 'Um dos taes christãos novos, explicou a outro o que, em verdade era aquillo -- o reflexo do sol -- e não nenhum milagre. Tanto bastou para que logo os frades de S. Domingos entrassem a berrar: -- 'que elle era um hereje, que devia ser morto por offender a Deus'. O povo bestealisado e fanático, tirou logo o pobre homem pelos cabellos para fóra da egreja e ali foi morto e lançado a uma fogueira. Os frades, com crucifixos na mão, vieram para a rua chamar 'Heresia! Heresia'. Que matassem os christãos novos! Que o céu estava pedindo vingança. Por toda a cidade houve um levantamento do povo que em três dias e três noites matou mais de duas mil pessoas e queimou mais de tresentas! ' -- E tudo isso causado pelos frades! -- commentou o João Russo... Foi aqui que ficámos da outra vez, lembram-se? Vamos em frente: '-- Tudo, continuou o sr. António. E quanto maior furor sanguinario mostrava o povo mais alguns frades prégavam a matança, num furor de tigre de onça, animaes que por maies prezas que matem nunca satisfazem os seus instinctos sanguinarios. Desde esse dia o terror apossou-se de toda a gente, e todos, para não incorrerem no desagrado e nas iras dos frades, não faziam outra coisa senão andarem todo o tempo mettidos pelas egrejas e pelos confissionarios, deixando para traz o amanho da vida. Um tal modo de viver, facil é advinhal-o, tornou toda a gente fanatica e estupida. Era o que elles queriam. A egreja tem pregado sempre a ignorancia do povo, para mais facilmente poder conseguir os seus planos. A D. Manuel suceedeu ainda outro rei mais beato, chegando até a ser um grande fanatico -- D. João terceiro, que emquanto não conseguiu em Portugal a Inquisição, não descançou. E para o conseguir gastou rios de dinheiro. Todos vocemecês pouco mais ou menos sabem o que foi a Inquisição'... (nota 27) -- Mais ou menos sabemos... -- Não sou eu a perguntar, João da Neta. Estava a ler o texto. Era o sr. António a abrir caminho para explicar aos seus companheiros, ou aos leitores, ou ao povo, como queiramos, o que foi a Inquisição. Se passarmos os olhos pelo conjunto dos diálogos, verificamos uma grande preocupação didáctica, interesse em ensinar os menos instruídos, e ao tempo o analfabetismo era regra, os letrados pequeníssima excepção. O que levanta uma questão curiosa. Se este tipo de diálogos, como já perceberam, servia para esclarecer pessoas pouco instruídas, o mais certo é que tais destinatários, o 'público-alvo' como hoje se diz, não soubessem ler. Logo, a mensagem só passaria por intermédio de alguém que lesse o jornal aos outros. Ou seja, a exposição de determinadas opiniões em forma de conversa seria transmitida aos leitores também nesse formato, através de um mediador. Se efectivamente assim aconteceu, teríamos então diálogos em texto escrito transmitidos oralmente aos leitores. Sim, porque os eventuais 'escutadores' desses diálogos também deviam fazer perguntas a quem lhos estivesse a ler... |