O vagabundo do espaço

Capítulo V            Página 4

-- Porra, ai desculpe, professor, mas isso em vez de acalmar, até arrepia.

-- Foi o que eu disse há pouco, Vanderlei. Por tanto se falar dos males que não vão acontecer, os espíritos mais pessimistas são muito capazes de lerem o filme ao contrário. Ai isto também pode acontecer, e isto também? Valha-nos Deus, que o fim do mundo vem mesmo aí. É daqueles casos curiosos em que a imprensa joga com um pau de dois bicos. Ainda hoje se passam coisas do género. De tanto se falar no fenómeno do consumo do 'ecstasy', mesmo alertando para os males que causa ao corpo humano, os leitores com apetência para a aventura são muito capazes de reterem apenas os pormenores divulgados pelos media, e referentes à facilidade de aquisição e baixo preço. Ainda há dias um jornalista meu amigo me falava do caso da reportagem das alfaces gigantes, que cresceram para as bandas de Torres Vedras, derivado de um mau uso de um produto qualquer por parte de um agricultor. Como as alfaces cresceram que nem árvores, passe o exagero, um jornal tratou do assunto tipo 'fenómeno do Entroncamento'. Passado algum tempo, o que é que os técnicos do Ministério da Agricultura verificaram? Que agricultores de vários pontos do país passaram a comprar o tal produto para fazer crescer as alfaces muito mais depressa, e assim responderem às solicitações dos compradores, no caso as grandes superfícies que se instalaram em Portugal.

Aliás, e retornando à aparição do cometa, tema que me fascinou, resolvi dar uma olhadela por outro jornal que ao tempo se publicava na região, o 'Notícias de Coimbra'. Se tivesse tempo gostava de ver como é que os jornais de Lisboa e do Porto trataram o assunto. Para já não deu, fiquei-me só por esse jornal da capital do distrito. E é curioso que, por mais do que uma vez eles fustigam o papel da imprensa, alarmista em demasia. Ora ouçam com atenção o texto que respiguei do dia 12 de Março de 1910:

'O COMETA HALLEY -- As noticias que, inconvenientemente atiraram para a imprensa quando se principiou a fallar do cometa Halley, fazendo ver que a apparição deste astro podia produzir effeitos terriveis no planeta que habitamos, tem já causado consequencias lamentaveis em alguns espiritos fracos. Assim é que nas proximidades de Guimarães se deu já a morte de um homem, a quem a ideia da apparição do cometa trazia verdadeiramente preocupado e inquieto, não pensando noutra coisa, recusando-se a comer e passando noites tormentosas sem poder dormir. Ha poucos dias, segundo lemos num jornal do norte, occorreu no Porto uma scena que teve seus effeitos comicos de mistura com uma grande perturbação e inquietação de dezenas de pessoas que, vendo apagar rapidamente a luz electrica por avaria nos fios conductores, suppozeram logo que esse facto não era mais nem menos do que uma consequencia do cometa! E note-se que isto está succedendo quando ainda estamos muito afastados do dia em que o cometa Halley mais proximo estará da terra - a 19 de Maio. E quem tem a culpa dos factos que se vão dando, do susto que se apossou de tanta gente? A imprensa e só a imprensa, pela leviandade com que dá vulto a certas noticias, embora pretenda mais tarde, como agora se está vendo, tranquilisar os espiritos, desfazendo a má impressão que essas noticias causaram'.

Reparem que é um jornalista a criticar os colegas, e de forma bastante contundente. E continua na mesma linha, sugerindo no final da prosa a realização de conferências por parte de especialistas, com o fito de tranquilizar os mais assustadiços. Vou ler mais um pedaço:

'Ultimamente téem sido publicados artigos nos jornaes, de pessoas auctorisadas no assumpto, nos quaes se demonstra que o cometa Halley não pode, ainda mesmo na peor das hyphoteses, causar á terra consequencias perigosas. É um phenomeno natural que muitas vezes se tem repetido sem que produzisse o menor damno ao nosso planeta. Para muitos é já tarde o pretender restabelecer a verdade, ácerca da importância desse phenomeno, porque não ha meio de fazer convencer esses espiritos fracos de que houve realmente excessos na informação que a principio se deu em certos jornaes, e que essas noticias só serviram para levar o desassocego e o mêdo a milhares de pessoas'. (nota 18)

Eu não me canso de insistir nesta tecla. Por vezes, ao folhear a imprensa de antanho, fico com a convicção de que a história se repete mesmo. Vejam esta crítica ao medo instilado nas pessoas pela imprensa e comparem com o que acontece nos dias de hoje com os jornais, a rádio ou a televisão. Mais esta do que aqueles, sem dúvida. Se pensarem um poucochinho, hão-de reparar que o fundo de muitas notícias é o medo. Hoje as pessoas já não temem o fim do mundo no virar dos séculos, mas era necessário marcar essa data tão mitificada com o anúncio de alguma catástrofe. Como a informática está na moda, são os computadores que não estão preparados para o ano zero, e lá se pode ir toda a informação armazenada, e mais problemas que eu sei lá, que de computadores percebo pouco ou nada. Do estrangeiro, nomeadamente dos países mais pobres, e outros nem isso, o que nos chega? Violência e mais violência. Veja-se o caso do Brasil: muitos turistas que se deslocam até lá vão borradinhos de medo, a contarem com um assalto ainda nas escadas do avião. O mesmo vale para os subúrbios das grandes cidades, via de regra anatemizados nos media como sítios horrorosos, impenetráveis por gente de bem. E etc, e mais eteceteras...


O fim do Mundo em 1939? Saiba tudo sobre este assunto lendo o recorte que respigámos do Jornal 'Alma Nova' nº 386, de 14 de Julho de 1934.

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