O Dr. Pedro Camaleão candidata-se à Câmara |
Capítulo IV Página 3
-- Estávamos a falar da falta de interrupções neste diálogo quando me interromperam. Prossigamos a leitura: 'Por tudo isto vêem bem vocemecês que um empregado público tem todo o direito, todo, a seguir as ideias politicas que quizer, não é certo? -- Sem duvida, responderam todos os presentes'. -- Cá têm vocês uma interrupção que serve apenas para lembrar aos leitores que o sr. Antonio tinha gente a ouvi-lo, e ao mesmo tempo quebra o ritmo monocórdico deste texto, o tal comício de que falava há pouco o Pimpão. Preparem-se que o sr. Antonio vai engatar de novo para uma longa discursata. '-- Então eu agora, por exemplo, sou republicano ou socialista, mas amanhã por qualquer circunstância venho a ser um empregado público. Por esse facto hei-de mudar de ideias e passar a ser monarquico e progressista? Por qualquer coisa cai o governo progressista e vai, supponhamos, um governo regenerador. Depois a esse governo seguia-se um franquista, e zas! anda, Antonio, passa a franquista, depois a nacionalista e ao diabo que os carregue?! Andava uma pessoa a mudar de opiniões, de ideias, tal e qual como todas as semanas se muda de roupa branca! Não era mal apanhado. Elle sempre ha cada disparate que é mesmo um louvar a Deus! Sim, porque se um empregado publico é, como certos sujeitos dizem, empregado do governo não devia estar com progressistas sendo regenerador, ou vice-versa. Ou então é obrigado a ser monarquico pelo facto da primeira auctoridade da nação ser um monarca, um rei?! O rei é que é como um nosso empregado, e não os outros delle. O povo é que está no seu direito de o querer ou não à frente dos negocios publicos do paiz. Ora essa. O povo é soberano. A soberania, quer dizer, o maior poder reside no povo, porque o povo é que forma a Nação, o Estado'... e por aí adiante, que este já vai muito longo (nota 14). Mas deixem ainda que vos assinale algumas falas dos amigos do sr. António, no final da charla. Vão ver que a presença do povo no texto cumpre várias funções: dar razão ao dono da conversa, o tal sr. António; evidenciar a importância das suas prosas; deixar no ar a ideia de que o povo devia ir abrindo os olhos, estar atento, desperto para determinadas realidades 'que entram pelos olhos dentro', como bem assinalava o Joaquim Coxo. Ora reparem: '-- Eu cá pela minha parte, disse o João do Oiteiro, acho que tudo quanto o sr. Antoninho tem estado a dizer são verdades como punhos. -- E que entram pelos olhos dentro, respondeu o Joaquim Coxo. -- Pena é que toda a gente as não saiba e dellas se não convença, porque então não nos iria tão mal a vida, exclamou o Tiotoneo Maneta' . Este empurrão dado pelos amigos do sr. Antonio vem reforçar a mensagem que ele pretendia deixar naquele texto, a necessidade do povo ser instruído, abrir os olhos, em contraste com o interesse do poder em manter o zé povo na ignorância. Ora reparem: '-- Dizem muito bem, proseguiu o sr. Antonio. Se o povo soubesse bem quaes os seus direitos e qual a sua força, não tivesse medo que os mandões nos calcassem tanto como calcam. Mas elles vão experimentando a pouco e pouco, e enquanto acham molle carregam e tanto carregam até que um dia, se não atirarmos com a albarda ao ar, como se costuma dizer, nos esmagam de todo. Porque é que os nossos governos não querem dar instrução ao povo? Porque isso não convem aos seus intuitos. Se o povo fosse todo bem instruido já elle conhecia melhor os seus deveres e direitos, já tinha mais conhecimento dos factos que passam na vida politica e por consequencia não toleraria tantas patifarias como lhe fazem. -- Isso é mais que certo, respondeu o João da Rosa. -- Bem faz o sr. Antoninho em nos ir abrindo os olhos, disse o Antonio Russo. -- Bem. Por hoje já chega; vai a noite adiantada e são horas de vocemecês se irem chegando até valle de lençóes. Ficaremos por aqui' ... e acabou. |