O Dr. Pedro Camaleão candidata-se à Câmara |
Capítulo IV Página 4
Como vêem, sempre houve diálogo, mas apenas para reforçar a mensagem que Paulino, aqui incarnando o sr. António, pretendia transmitir aos leitores. Estávamos em 1910, neste caso concreto em Março, e os republicanos, como se pode perceber, não perdiam uma oportunidade para desancarem no decrépito regime monárquico. Aqui, nesta secção 'Serões do Povo -- À Lareira', com a subtileza de introduzir o povo no próprio texto, emitindo já uma opinião primeira sobre o que o leitor do jornal haveria de ler. É um caso bastante curioso, e que talvez pudéssemos transpor para os nossos dias, para a televisão. Pode parecer uma enormidade o que vos vou dizer, mas têm por certo reparado na presença cada vez mais massiva de pessoas nos programas de televisão. Se nalguns casos elas são chamadas a participar directamente no programa, noutros funcionam apenas como decoração humana, emolduram de rostos o fundo do écrã, a sua única intervenção consiste em bater palmas que a maior parte das vezes nem são espontâneas. É um senhor da produção que levanta uma placa pedindo 'Palmas', e os basbaques batem palmas; a seguir levanta a placa pedindo 'Risos' e os basbaques riem. E até há programas, quantos! tantos! que, não tendo povo nenhum, já trazem as palmas e os risos enlatados. Como os homens da televisão não brincam em serviço, tal expediente pretende sem dúvida provocar uma reacção simpática por parte do auditório, em casa de cada um de nós. Ouvimos as palmas e os risos, e sem querer somos levados a aprovar e a achar piada de coisas a que, de outro modo, talvez nem achássemos graça nenhuma. Os diálogos, em texto de jornal ou noutro suporte, como o livro, pois este expediente narrativo tem barbas, são em meu entender precursores da presença do público nas rádios e nas televisões de hoje. -- Muito bem apanhada, essa, professor Vergílio. Pois é isso mesmo, os sacanas põem lá as palmas prá gente também achar piada. E isso da tabuleta é mesmo verdade?! Eu achava que as pessoas quando se riam ou batiam nas palmas, era mesmo porque estavam a gostar do programa. Que enganação... sacanas! -- Estavas à espera de quê, Vanderlei? Pensavas que eles convidavam as pessoas por causa dos seus lindos olhos?! Aquilo é tudo shóbisness. Eu sei porque noutro dia vi um programa no satélite do eng. Adolfo em que eles mostravam isso tudo. É tudo truques, nem a neve dos filmes, e a chuva, quase sempre não é verdadeira. Fazem aquilo com neve carbónica, e com os bombeiros. É tudo para enganar cá a rapaziada... os amaricanos são lixados, raio de raça para inventar coisas..... -- Nos diálogos que vos tenho vindo a ler, a estratégia é a mesma. Para além das falas do povo entrarem, por vezes, como mero expediente narrativo -- ou seja, para quebrar a monotonia, imprimir ritmo ao texto --, noutros casos a essa intenção há que juntar a busca de outros efeitos. O povo faz perguntas pretensamente inocentes para ajudar ao fio do discurso, para marcar com mais vigor uma determinada ideia ou mensagem; por vezes deparamo-nos com exclamações, reacções de assentimento ao que vai dizendo o sr. Antonio; de aprovação e de repúdio também. No fundo, uma antecipação das reacções que Paulino pretendia provocar nos leitores do 'Commercio da Lousã'. -- O professor desculpe lá a minha ignorância, mas agora acho que falou um bocado caro, parece que estava na aula e nós não estudámos como os seus alunos. Explique-me lá isso outra vez, se não é maçada. -- O Pimpão deve querer que o professor lhe faça um desenho, ó professor. -- Mas eu explico, com todo o gosto. Vamos primeiro às perguntas feitas pelo povo. Tomem lá alguns exemplos: 'Então nessas partes não há côngruas? -- Porque é que os jesuítas tinham interesse em que passássemos a ser governados por Espanha? -- Então é preciso pagar muito? -- Será verdade? -- Então porque é que os monárquicos não se passam para a república, se esta é muito melhor?' São perguntas que o leitor comum talvez fizesse, e que aqui já levam a resposta antecipada. Além do mais, como se tratava de textos marcadamente ideológicos, já municiavam os leitores mais empenhados na causa republicana para eventuais perguntas que lhes viessem a ser feitas quando comentassem tais assuntos com gente iletrada.
FIM DO CAPÍTULO IV |