A Dete fala

Capítulo X           Primeira Página

-- E como o prometido é de vidro, o professor vai botar mais um dialgo para a gente. Caluda, meninos, que chegou a hora do estudo...

-- No panegírico a Alexandre Herculano, de 10 de Maio de 1910, a 'egreja' apanhava uma vez mais por tabela:

'(...) Escreveu tambem a Historia da origem e do estabelecimento da Inquisição em Portugal, onde se vê em todos os seus horrores os processos desse terrivel tribunal de sangue, das peores torturas, das fogueiras e mil outros atrozes sofrimentos com que essa gente, em nome de Jesus, como elles diziam, iam ceifando todos os homens, cujos modos de pensar lhe não agradavam. Escreveu muito contra os jesuitas, pondo lhe a calva á mostra, como se costuma dizer. Vergastou-lhe de grande todas as poucas vergonhas, as infamias de que se serve essa maldita seita. Herculano era um fervoroso christão, mas concebia a relegião de Christo como elle a pregou, e não cheia de erros e de vicios de que hoje se servem os reaccionarios para, á custa dessa religião, toda amor, toda bondade, viverem regaladamente, á custa dos tolos que se fiam em todas as pataratas que lhe enfiem na cachimonia -- amor, a virtude, o respeito pela honra, a egualdade, a fraternidade, e a liberdade, e era assim que Herculano concluia a religião. É como já lhes disse, lhe metesse nojo todos os processos reles de que se servem os reaccionarios, guiados não pela sua convicção na religião, mas simplesmente pelo interesse, nos seus escriptos tosou de grande todos os vendilhões do templo, que saíam da sua luminosa pena a escorrer sangue e lama'. (nota 37)

-- Chiça, menino, que o tal de Paulino tinha pau na palavra. Tinha pau? cachaporra, mas é, que ele dava-lhe c'uma força que só visto!

-- Tens razão, Veríssimo, o home era fogo! Sabe que mais, ó professor? Eu no seu lugar, com tanta sabedoria que o senhor tem nessa cabeça, sabe ler bem, e tem esses dialgos todos guardadinhos, eu fazia um livro e vendia-o, que ainda fazia um bom dinheiro com ele e tal como nós aprendemos muito a ouvi-lo, também os que comprassem o livro ficavam a aprender, e era bom para todos.

-- Eu sou da opinião do Pimpão, e até acho que era giro se metesse alguns dialgos também da gente aqui a falar com o professor. Mas tinha que meter o nosso nome verdadeiro... olha nós, o nosso nome num livro isso é que havia de ser uma festa! Eu compro logo dez, para mandar para o meu irmão do Brasil e o outro do Canadá, e para dar no Natal à canalhada que já está casada. No Natal tomem lá cóltura, que é uma boa prenda...

-- Dá muito trabalho escrever um livro, meninos, vocês nem as pensam. E dinheiro para o imprimir, é uma fortuna, hoje em dia...

-- Então agora que há subsídios para tudo, o professor pedia um subsídio aos da cultura, ou à cambra, e vai ver que eles dão.

-- E depois eu não sou nenhum escritor, lá fazer o miolo até nem era difícil, reproduzia os diálogos de antanho e já estava. Mas começar e acabar é que havia de ser uma chatice.

-- Qual quê! Olhe, eu o miolo é que nunca lá iria, que as minhas más letras não me ajudavam de certeza. Mas até lhe fazia o princípio, se o professor quisesse. Depois corrigia...

-- E como é que tu começavas, Vanderlei?

-- Começava assim: Era uma vez um jornal que trazia notícias e umas conversas do povo pra deitar o rei abaixo. E a verdade é que passado pouco tempo o rei foi-se mesmo abaixo das canetas... ah! ah!... era um começo muito político, não era?

-- Assim o professor havia de vender livros, havia. O meu princípio é bem melhor...

-- Falou o vaidoso do João da Neta, intelectual da mecânica enferrujada. Diz lá o teu princípio, então...

-- Eu fazia uma coisa mais assim do tipo dos romances a sério. Por exemplo, como um que ando a ler agora, que se chama... ai, como é que se chama o raio do livro? Bem, não interessa. Eu fazia assim: Abriu a porta de casa com dificuldade. Faltava-lhe a coragem para entrar. Porque é que insistia em deslocar-se todos os dias ao cemitério, se já sabia que viria de lá de rastos?

-- Posso saber o que é que o cemitério tem a ver c'os dialgos do Paulino?

-- Cala-te, que me desconcentras. Deu um passo...

-- Assim com os olhos fechados como estás ainda bates no armário...

-- Desisto, ó professor. Continuo? Está bem... Faltava-lhe a coragem para entrar. Porque é que insistia em deslocar-se todos os dias ao cemitério, se já sabia que viria de lá de rastos? Deu um passo, deu outro, sentou-se de repelão no sofá. E começou a ler os diálogos de Paulino, a sua única companhia há muitos meses.

-- Também ficar vivo para isso, era melhor morrer! Eu punha-lhe picante, arranjava outra mulher ao viúvo, e punha os dois a ler um dialgo cada um, à vez. E depois, quando estivessem com a vista cansada, iam para a cama, ih, ih!

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