A Dete fala

Capítulo X            Página 2

-- E tu, Zé Cristão, como é que começarias o livro, tens alguma ideia?

-- Ah pois tenho. Eu punha isto na primeira página: Quer conhecer o mal que os padres faziam ao povo antigamente? Pois leia as páginas seguintes. Toda a verdade sobre os horrores da Inquinação e dos jesuítas que o Pombal fez num bolo. Um livro com cenas impressionantes que podem chocar os mais sensíveis...

-- Tu andas é a ver muita televisão, rapaz. Isso não é o princípio de um livro, mas um spot publicitário...

-- Era o que eu gostava. Gostava mesmo de ser da publicidade, pois cá mexe a costela do meu querido pai, que Deus tenha... a vender nos mercados c'o megafone em cima da carrinha, não havia cobertor e peúgas que sobrassem, benza-o Deus...

-- Também posso dar a minha opinião?

-- Olha, a Dete falou, a Dete falou!

-- O que vais tu dizer, rapariga, se não sabes do que estamos a conversar?

-- O João tem razão. A não ser que ela estivesse com o ouvido à coca. Ah, pois estavas, marota duma figa! A ouvir as conversas dos clientes. Os teus patrões francisados não te ensinaram no curso que o que dizem os clientes é tudo em ófe?

-- Vá lá, não molestem mais a rapariga. Dá lá a tua sugestão, minha querida...


-- Então eu começava assim:

'Olá meus amigos. Então que alvitram para a nossa conversa de hoje?

-- O Ti Vergílio alembra-se que quando isto inda era uma taberna e não um fastifud, ficou uma vez de nos falar duns serões à antiga portuguesa, c'umas conversas muito engraçadas?

-- Já sei do que falas, João da Neta. De umas crónicas que apareciam com alguma regularidade num jornal cá da nossa terra, o 'Commercio da Louzã'. Ui, mas isso dava para escrever um livro, passarei um ror de meses a falar-vos desses escritos.

-- Então quanto mais rápido acomeçar, mais depressa lá chegamos ao final...

-- Estávamos em princípios de 1910, o regime monárquico dava as últimas, e os jornais que não simpatizavam com o sistema vigente ferravam-se às canelas do poder como gato a bofe. Para além das notícias, dos comentários, das crónicas, dos respigos de jornais de Lisboa e do Porto, havia quem simulasse uns diálogos entre um erudito e vários homens do povo. Afinal de contas, uma forma talvez mais eficaz de dizer as coisas, uma maneira de fazer chegar a mensagem ao povo usando linguagem que a gente simples compreendesse melhor. Percebeste, Vanderlei?

-- Pois percebi. É como a gente estamos a fazer aqui agora. Só que na altura devia dar uma trabalheira, pois decerto que ainda não havia os gravadores para enlatar as conversas da gente...'...

Até que en F I M