Um outro pormenor do mercado, no início do século XX


No princípio do século XX prosseguem as habituais reparações, mas um novo impulso iria ser dado com a elaboração do plano de um pavilhão para a venda de peixe, decisão tomada em 23 de Janeiro de 1902. Para o efeito, é nomeada uma comissão em 5 de Junho desse ano, a fim de analisar o projecto, da autoria do Arqº Silva Pinto. Orçamentado em 10 contos, iria sofrer algumas alterações, sendo aprovado pelo Ministro do Reino em Outubro de 1903, iniciando-se as obras em 1905. Depois de alguns contratempos, viria a estar pronto em 1907, tendo um regulamento próprio. O Mercado do Peixe foi um significativo melhoramento para as condições do mercado, constituindo um interessante exemplar da arquitectura do ferro e vidro.

Dera-se, entretanto, um facto que não poder ser dissociado da história do Mercado D. Pedro V. A chamada "Lei do Selo" agravava substancialmente os impostos, atingindo particularmente as vendedeiras do mercado, na generalidade de fracos recursos económicos. A aplicação de multas leva as padeiras de boroa das Carvalhosas, logo secundadas pelas vendedeiras de hortaliças e outras, a manifestarem-se ruidosamente no dia 11 de Março de 1903, frente aos Paços do Concelho e nas principais artérias da Baixa. Coimbra ficou em verdadeiro estado de sítio, prosseguindo os tumultos nos dias seguintes, tendo o comércio fechado, bem como as fábricas e oficinas, movimentando-se milhares de pessoas, o que originou a vinda para a cidade de diversas forças militares. O acontecimento, que ficou conhecido como a "Revolta do Grelo", viria a ter trágicas consequências, provocando mortos e feridos entre a população, sendo uma das mais violentas manifestações a que Coimbra assistiu. A própria Universidade e o Liceu foram encerrados, tendo a Academia manifestado inequivocamente a sua solidariedade para com as vítimas da brutal repressão. E, na própria Câmara, na sessão de 14 de Março, em reunião extraordinária, os edis resolveram solicitar a revisão da lei que estivera na origem dos acontecimentos, pedindo ao presidente, Dr. Dias da Silva, ausente em Lisboa, para interceder junto ao governo, de modo a apaziguar os ânimos, para que a cidade retomasse a normalidade. E na sessão seguinte, em 20 de Março, o presidente relatou as suas diligências, tendo sido atendidas as reivindicações e suspenso o imposto que originara o conflito, reconhecendo-se que fora a sua criação e "mais ainda, o modo descaroável por que se pretendeu fazer a sua arrecadação, as causas principais, senão únicas, dos tumultos ultimamente levantados no concelho".

Os acessos ao mercado seriam facilitados com a construção de uma nova rua, em 1904, que ficaria a ligar o cimo da Rua Martins de Carvalho com o largo em frente da entrada principal, e que viria mais tarde a denominar-se Rua Pedro Cardoso. Para a sua abertura foi necessário proceder a algumas demolições, entre as quais a da Capela da Senhora do Carmo, pertencente à Santa Casa da Misericórdia.

Dois anos mais tarde, em 1906, é construído em frente ao pavilhão do peixe um posto de inspecção destinado à análise dos produtos aí vendidos, e que se manteria até 1939, ano em que é demolido, passando a inspecção a fazer-se dentro do próprio pavilhão.

Encarregado pela Câmara de elaborar um novo projecto, o Arqº Silva Pinto apresenta um interessantíssimo estudo, feito em 1908, de um novo mercado, que é aprovado na sessão camarária de 11 de Fevereiro de 1909. Concebido segundo os cânones arquitectónicos do início do século XX, com estruturas de ferro e vasta aplicação de vidro (de que o Edifício Chiado, em Coimbra, é um significativo exemplo), não viria a ter execução, talvez pelo elevado montante do seu custo (60.021$000 reis). A ser edificado, constituiria hoje, sem dúvida, um dos mais curiosos exemplares da chamada arquitectura do ferro, tão representativa de uma época.

Em 1911 as "impróprias vedações de madeira" seriam substituídas por muros de pedra e cal, sendo, igualmente, nesse ano, transferida para dento do recinto a Fonte da Madalena, até então, como hoje de novo, adossada ao muro da actual Escola Jaime Cortesão.

Como era natural, o mercado era um mundo vivo, onde se desenrolavam os mais variados acontecimentos. A tradicional presença de soldados, apreciando "a paisagem", leva a que, em 10 de Abril de 1913, se oficie ao General Comandante da 5ª Divisão para mandar policiar o local, a fim de evitar que os militares importunassem as pessoas. E, como exemplos de que as coisas não corriam sempre pelo melhor, vemos em 1915 uma vendedeira ser impedida de ali entrar durante 15 dias, por ter proferido palavras ofensivas da moral pública, ou uma outra que sofre, em 19l7, uma suspensão de 30 dias por incitar à greve. O pedido de policiamento era frequente, mas surgem também incidentes entre os próprios fiscais e as forças policiais, por estas autuarem vendedores sem dar conhecimento àqueles.

E as pequenas obras continuavam a ser feitas, como aconteceu em 1912, em que, a pedido das vendedeiras de sardinha, foram construídas bancas de mármore no pavilhão do peixe, ou a necessidade que houve de restaurar, em 1922, as coberturas que tinham desabado. Igualmente, o pavilhão do peixe apresentava sinais de ruína, sendo em 1923 colocada uma rede de resguardo na sua cúpula, "a fim de evitar que o rapazio partisse os vidros".

A situação das condições do mercado tornava-se insustentável. A cidade expandira-se na zona em que se inseria, a população e as suas necessidades aumentavam progressivamente, não correspondendo o espaço, minimamente, às exigências. E, ao longo dos anos, a Imprensa reflecte a precaridade das instalações, como podemos ler na Gazeta de Coimbra, de 4 de Abril de 1914: "O mostrengo que hoje ainda ali se encontra, não deve continuar por mais tempo, para brio e lustre dos que dirigem os negócios do município conimbricense e para bom crédito e honra da cidade"; ou, no mesmo jornal, em 27 de Janeiro de 1915: "É necessário que desapareça essa nojenta coisa que aí está com o nome de mercado!"

Quanto ao jornal A Província, por sua vez, escrevia, em 6 de Julho de 1917: "Os pardieiros que para aí estão, fazendo de mercado, são uma verdadeira miséria imprópria da terceira cidade do país e envergonhariam a mais humilde aldeia sertaneja". E acrescenta, depois de preconizar uma nova localização: "Não concordamos com a reconstrução dele no local onde actualmenta se encontra. Isso seria um erro irreparável". Alvitrando a edificação de um novo mercado na Rua da Sofia e Terreiro da Erva, refere que a "Avenida Sá da Bandeira, hoje a avenida mais elegante de Coimbra, estender-se-ia até ao edifício dos Correios, ornado de belos jardins e ladeado sempre de elegantes construções".

A Gazeta de Coimbra que, em 17 de Julho desse ano, já se contentava "em ver um elegante, cómodo e amplo mercado, no local onde está", continua em 21 de Janeiro de 1919, depois de se referir ao mau estado da área: "Não há, absolutamente, no nosso mercado, cuidados higiénicos de espécie alguma, não só na exposição dos comestíveis à venda, como, até, no seu acondicionamento e mostruário ao público comprador". Mas não eram só as condições que mereciam reparo: "Coíba-se rigorosamente a falta de decoro na linguagem dos vendedores, verdadeiramente desbragada, muitas das vezes, como pode presenciar-se diariamente. Por dá cá aquela palha, pela simples discordância de oferta de preços, é às vezes um dilúvio de pragas e insultos baixos e soezes, que cai o Carmo e a Trindade".