Diana |
Como os violadores que se escudam em anterior provocação das violadas, os paparazzi não a escutaram porque se justificaram na cumplicidade que Diana teve na construção da sua própria fama
Ferreira Fernandes Tal & Qual 5/09/1997
DIANA, a generosa. Era - vi fotos dela, com gestos ternos que suavizavam a dor de pessoas desesperadas. Mas a verdade é que a princesa era generosa em part-time. Em 1990, conheci uma enfermeira no Kuíto, cidade-mártir de Angola, onde cuidava de crianças de uma só perna por a outra ter sido levada por mina antipessoal. Ela era de Luanda, tinha aterrado a buscar feridos mas acabou por ficar - e, acreditem, Luanda era o paraíso comparada ao Kuíto. Perguntei-lhe o porquê da escolha. Ela encolheu os ombros e apontou a resposta que lhe era óbvia: os miúdos pernetas. Éramos uma dezena de jornalistas mas nenhum fotógrafo virou a objectiva para a enfermeira, ou se o fizeram foi porque ela estava ao lado da tragédia (e não o contrário). Para escrever esta crónica recorri aos meus apontamentos da altura, mas não encontrei o nome dela. Isto para vos dizer que já conheci gente generosa a sério, que se dava por inteiro e ficou anónima. Diana - a mãe. Era - vi fotos dela, cúmplice e amiga daqueles a quem Clinton e Blair chamaram "os dois rapazes" (feliz coincidência este vocabulário: neste momento é o que são os dois principezinhos, "rapazes"). Mas é possível compararem-se as mães, a ponto de se dar destaque a uma? A minha mãe é importante por razões que vocês não têm nada com isso e mais nada digo sobre o assunto. Da relação de Diana com Guilherme e Harry nada de verdadeiro sabemos, nem podemos saber. Amor de mãe é pessoal e intransmissível para as páginas de jornal. Diana - a princesa. Era, a terceira filha do conde Spencer era ainda a princesa de Gales. Mas não seria a acepção nobiliárquica do termo que mereceu o destaque; aí, há princesas mais cotadas do que esta, que até foi destituída do direito a tratamento de Sua Alteza Real. Então princesa, na interpretação comum? O termo "príncipe", ao contrário de "rei", que carrega força e poder, é daquele que é bom em si mesmo, sem autoridade. Mandela é um príncipe entre os políticos, o Adelino Gomes é um príncipe entre os jornalistas, porque se destacam dosseus pares com a qualidade que prescinde de posto. E Diana, era princesa de quê? Não, as fórmulas com que nos têm vestido Diana nada dizem. Rainha dos corações, também lhe chamaram. Quando do coração, o lugar da vasta gama dos afectos, o que ela mais evoca é a compaixão. A Diana que morreu na madrugada de domingo em Paris não era uma deusa. Se ela fosse aquele ser extraordinário que me têm dito esta semana que era, eu não saberia julgar os acontecimentos com o rigor que devo. Ela era simplesmente uma mulher famosa. Era natural o interesse dos fotógrafos por ela. Acontece, porém, que naquele dia e àquela hora ela disse que não. Como os violadores que se escudam em anterior provocação das violadas, os paparazzi não a escutaram porque se justificaram na cumplicidade que Diana teve na construção da sua própria fama. O que diz o Código Deontológico dos Jornalistas sobre o assunto nem importa. Importa só saber o que diz a delicadeza e a elegância. Se uma pessoa diz não, é não. |