Um mundo de lágrimas

O público, no seu voyeurismo, no seu desejo de ver como vivem, amam e se divertem os poderosos, também é culpado desta morte. É ele que, em última instância, alimenta este jornalismo de sarjeta

Nicolau Santos*           Público 1/09/1997

"Tenho a casa cheia de lágrimas". Era assim que começava um poema homenageando Vinicius de Morais, no dia da sua morte. Hoje, apetece dizer que temos um mundo cheio de lágrimas. A morte de Diana não deixou ninguém indiferente, no mais recôndito canto do planeta. E tudo porque a princesa, para além da sua indiscutível beleza, simpatia e simplicidade, foi também uma pessoa que soube utilizar os meios à sua disposicão para se empenhar em diversas campanhas humanitárias, desde a Bósnia a Angola, da luta contra a sida e contra as minas antipessoais até ao apoio da recuperação de crianças deficientes. Diana tornou-se grande, muito maior que o seu ex-marido, o príncipe Carlos, e passou a ser uma cidadã do mundo. Por isso, políticos de todos os quadrantes adoravam ser fotografados ao lado de Lady Di. A princesa era hoje tão conhecida como o Papa, Bill Clinton ou Nelson Mandela e não será possível aos historiadores ignorarem no futuro a existência da antiga educadora de infância, que veio a casar com o sucessor da coroa britânica. Só isso explica, aliás, não só as manifestações de pesar vindas de todo o mundo, como o facto de no Reino Unido terem sido canceladas todas as manifestações desportivas e as televisões terem também suspenso toda a sua programação, algo só possível quando a pessoa em causa se tornou um dos símbolos da nação.

Como atingiu Diana este estatuto? Como passou da menina envergonhada que casou com o príncipe Carlos para a mulher segura, que abraçou causas difíceis e tomou posições públicas embaraçosas para o Governo e a Coroa britânicas? Como se tornou na mulher mais mediática do planeta? As explicações residem certamente no caminho que foi trilhando, nas acções que foi desenvolvendo, na dignidade da personagem que encarnou, mas também no''flirt'' constante que havia entre ela e os operadores de câmara e fotógrafos. O reverso deste namoro era a perseguição impiedosa de que era alvo por parte dos "paparazzi", desejosos de obter um instantâneo da princesa ou, se possível, dos seus amores. Foram eles a causa involuntária da morte de Diana, juntamente com os responsáveis das revistas e jornais de "affaires" amorosos que lhes compram as fotos. Mas não os únicos. O público, no seu "voyeurismo", no seu desejo de ver como vivem, amam e se divertem os poderosos, também é culpado desta morte. É ele que, em última instância, alimenta este jornalismo de sarjeta, enquanto a imprensa séria luta com dificuldades diárias para sobreviver. Também em Portugal, quatro revistas do coração vendem um milhão de exemplares, contra menos de 400.000 de quatro diários e dois semanários. É nisto que todos devemos meditar.

*Editorial. Nicolau Santos era Director do jornal Público (Portugal) à data da publicação do texto.

 
 

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