Ser, verbo violento

Antes, um político precisava apenas de exprimir o que pensava sobre os assuntos da governação. Hoje, é o seu carácter que interessa aos eleitores. Não importa tanto o que pensa, interessa saber quem é. E aquilo que se é exprime-se mais pela imagem do que pelas palavras

Jorge Wemans*           Público 07/09/1997

Violenta, inexplicável, absurda e trágica. Foi há uma semana e ainda é a notícia do dia. A morte da princesa Diana ocupa todo o espaço mediático e suscita inúmeros discursos sobre os próprios "media". Impõe-se a esta coluna.

A morte brutal desencadeou a imediata identificação dos culpados: os Windsor, para os que em tempos os veneravam ou sempre os rejeitaram, os "paparazzi", para as gentes públicas, o álcool e o excesso de velocidade, para os politicamente correctos. Os presumíveis culpados têm neste drama o papel dos bodes expiatórios no mais primitivo da sua função: objectos do sacrifício que permite restabelecer a ordem das coisas - a morte é a morte, a vida é a vida. Sem o sacrifício dos culpados no altar da opinião pública, tudo permaneceria demasiado complexo: a pujança da vida misturada com a morte fatal.

Como todo o absurdo trágico, a morte de Diana faz tremer as certezas banais do quotidiano, sinaliza a morte que convive com a vida, o drama que se enreda no sucesso, o horror que se enleia no belo. Para fugir a esta insuportável mistura do que queremos antagónico e irredutível entre si, socorremo-nos do sacrifício dos bodes expiatórios - afinal, queremos convencer-nos, são eles e não a vida - que introduzem esta confusão entre aquilo que deve estar ordeiramente separado.

Perante tal operação de aquietamento das mentes e dos corações apetece confessar-me "paparazzo" e condutor nem sempre respeitador dos limites de velocidade. Por não ser alcoólico, nem, manifestamente, Windsor.

Ultrapassando os meus problemas com as brigadas de trânsito, com os "paparazzi" partilho a fruição do olhar sem ser visto e como jornalista a minha profissão é revelar, dar a ver, mesmo (e principalmente) as situações que os nela envolvidos pretendem esconder.

É, de facto, demasiado simples tentar lidar com as interrogações abertas pela morte da princesa Diana pelo recurso às dicotomias da boa imprensa e da má imprensa, dos bons e dos maus jornalistas, dos bons públicos e dos públicos perversos. Fronteiras artificiosas em que, por acaso e para sossego nosso, estamos sempre do lado dos bons rapazes.

Naquilo que todos - públicos, editores, "media" e jornalistas - temos de "paparazzi", o PÚBLICO, recolhendo a melhor tradição do jornalismo, impõe-se limites. Desde logo no seu estatuto editorial, curtíssimo documento em que se refere: "PÚBLICO reconhece como seu único limite o espaço privado dos cidadãos...". E, de forma mais desenvolvida, no Livro de Estilo, quando sublinha a sua recusa a recorrer a todos os processos para obter a informação (a imagem).

A reflexão sobre os "media" que as absurdas mortes no fundo do túnel d" Alma provocam centra-se nestas duas questões: os processos usados para obter informação e o respeito pelo direito à privacidade.

E o PÚBLICO, por ter doutrina, tradição e alguma história de debates internos sobre estas questões, não pode sentar-se olimpicamente confiante na certeza de que a fronteira entre si e os "paparazzi" foi para todo o sempre traçada. Até porque estas são questões com contornos em permanente evolução.

Neste jornal, os jornalistas estão impedidos de recolher informações sob falsas identificações ou abusando da boa-fé das pessoas, de reproduzir conversas gravadas sem o consentimento prévio dos entrevistados, de obter informações sob coacção, etc., etc... O jornalista não é um polícia e recusa usar métodos que a lei permite a este. Toda a recolha de imagens - estas são ainda informação - está sujeita aos mesmos limites. Contudo, cada vez são mais numerosas as interrogações éticas que a captação e a reprodução de fotos coloca. Identificação visual de suspeitos criminais, exibição de mutilações, uso de fotos de menores para ilustrar casos reais, fixação de caras e corpos em situações, actos e circunstâncias que são apenas momentâneas na vida de tais pessoas. A enumeração poderia continuar e aponta apenas para a necessidade de apurar, no PÚBLICO, a sensibilidade quotidiana aos limites sobre a recolha e a reprodução de fotos. Não foi por acaso que a capa da edição de 31 de Julho suscitou várias reacções de leitores contra o uso do corpo ensanguentado e seminu de uma mulher ferida no atentado do mercado de Jerusalém.

O inviolável direito de cada um à sua privacidade apenas cede perante o interesse público. Mas o interesse público não se confunde com tudo o que eventualmente interessa ao público. O que interessa ao público é publicável se não conflitua com outros direitos. Se entra em conflito com outro qualquer direito, o interesse público de uma informação só existe se sem ela a opinião pública formulasse juízos errados ou insuficientemente fundamentados sobre pessoa, instituição ou matérias do domínio público. Mas, mesmo que, reconhecidamente, uma notícia seja do interesse público, quando conflitua com a privacidade de alguém, é sempre um direito dessa pessoa que se está a violar.

Tudo no melhor dos mundos, não fora o caso de a vida pública ter deixado, há muito, de se centrar em exclusivo sobre a cabeça dos seus actores para passar a incluir também o seu coração. Antes, um político precisava apenas de exprimir o que pensava sobre os assuntos da governação. Hoje, é o seu carácter que interessa aos eleitores. Não importa tanto o que pensa, interessa saber quem é. E aquilo que se é exprime-se mais pela imagem do que pelas palavras. A força da televisão apenas acelerou o processo. Contudo, a exigência da opinião pública em querer saber quem e como são as figuras que atravessam o espaço da notoriedade é democraticamente compreensível. Em momentos cruciais todos suspeitamos que ninguém decide em função apenas daquilo que pensa, mas em função daquilo que realmente é como pessoa.

Esta é a violência que os "media" protagonizam em relação aos notáveis do nosso Olimpo de fim-de-século: querem dar a ver o que cada um é. Para trás ficaram os verbos mansos e fáceis: pensa, faz, diz. Este é o tempo em que as figuras públicas se conjugam com o verbo ser. E nada é mais violento do que estar sob a exigência de se dizer quem se é. Mesmo quando tal se esconde por detrás da bonomia da frase lapidar, mas terrível, de Mário Soares: "Os portugueses conhecem-me!..." Evocação definitiva de que o espaço público é lugar do sentimento - de confiança, neste caso - para além do racional.

Obrigados e obrigando-se a mostrar quem são os meteoros do nosso espaço público, os jornalistas entram (ou são a isso convidados) no espaço privado dos notáveis do nosso universo. Parece que só aí eles se revelam no que realmente são. Casas, carros, hábitos, famílias, amantes, amigos e inimigos, animais preferidos, terrores de infância e desventuras de adolescentes, tudo se dá a ver para que todos saibam como eles são. E o público e o privado baralham-se de novo...

Diana, acossada em Buckingham Palace, resolveu dizer quem era. Escreveu por mãos alheias a sua autobiografia, revelando a sua história íntima. Respondeu aos avanços de Carlos para a imprensa com uma entrevista arrasadora em que jogou a força da revelação da sua privacidade. Ganhou por K.O. técnico a discussão das condições do divórcio. Perdeu a sua privacidade.

Aos "paparazzi" não se põem questões sobre o interesse público da informação que obtêm. Basta-lhes o conhecimento de quanto ganham pelas fotos que vendem. São comerciantes do espectáculo de terceiros. Mas para os jornalistas o verbo ser também é violento. Porque são eles - e não os próprios visados ou os juízes - quem decide da necessidade de violar o direito de terceiros à sua privacidade. De alguma forma administram privadamente um bem público. Um risco que a maioria dos notáveis do nosso Olimpo desejaria poupar-lhes.

* Jorge Wemans é o Provedor do Leitor do jornal "Público". (Portugal)

 
 

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