O testamento de Diana |
Miguel Sousa Tavares* Público 05/09/1997
Ninguém melhor do que Victor Cunha Rego explicou as coisas, numa simples frase: "Diana combateu, com sucesso, a realeza, em nome do 'jet-set'." À nossa escala, aí estão as edições especiais da "Nova Gente", da "TV-Guia", da "Caras", da "Visão", da "VIP", a confirmá-lo. "Adeus princesa", "Adeus Diana" e outras frases de impacto popular garantido. E, por todos, editorializou o director da "VIP": "O produto Diana era para consumo de massas" e "a sua infelicidade" só fez aumentar o consumo das massas. Morta, Diana vende ainda mais do que viva. Subtil, quase maquiavélico, Tony Blair colou-lhe o rótulo eterno de "Princesa do Povo" -- não num momento de emoção, como os "media" relataram, mas num momento de frio calculismo político-constitucional. De ora avante, Blair e os trabalhistas, que se colocaram ao lado da "Princesa do Povo", têm a família real e a monarquia inglesa como reféns. Blair e o povo estão na rua, homenageando a sua princesa. A família real está fechada em casa, em silêncio. São "insensíveis", diz a opinião pública escutada à porta do palácio de Kensington. Mas, estivessem eles também na rua e nas revistas, chamar-lhes-iam hipócritas (o correspondente da CBS previa ontem que o aparecimento público do príncipe Carlos no funeral poderá valer-lhe um enxovalho da multidão). De um modo ou de outro, a família real não tem saída airosa. O pretexto é indiferente. O que se passa é uma eloquente demonstração da vontade popular: a "Princesa do Povo", isto é, a Princesa das Revistas do Povo, derrotou -- na morte, como já o havia feito em vida -- os príncipes da Corte. O que está em causa agora, como se tornou cristalinamente evidente, é a sobrevivência da Monarquia inglesa. A mim não me impressiona a queda das Monarquias, porque não sou monárquico. Nem "de jure", nem "de facto": não aceito a supremacia constitucional, quer dos príncipes reais, quer dos príncipes do povo. A ambos, prefiro a eleição tranquila de gente normal, eleita por outra gente normal. Mas não tenho dúvidas que a "Princesa do Povo", proposta ao povo pelo "blitz" das revistas populares, é ainda mais ilegítima do que os príncipes de sangue, impostos ao povo por direito de nascimento, reconhecido constitucionalmente. Diana, princesa de Gales, tornou-se o inimigo nº 1 da Monarquia inglesa a partir do momento em que percebeu que não lhe restava outro caminho que não o divórcio, ao qual longamente resistiu, e a consequente renúncia à possibilidade de um dia vir a ser rainha. A sua célebre entrevista à "Panorama", que tanto comoveu o público, foi um genial exercício de sabotagem da instituição real. Ao insinuar que era o seu filho quem deveria ascender directamente ao trono, em lugar do pai, ela propôs, com um sorriso lânguido, um golpe de Estado constitucional, em nome da vontade popular. A tradição das monarquias é serem derrubadas pela força. Esta, uma das mais antigas e sólidas do mundo, arrisca-se a ser derrubada pelo sorriso demolidor da ex-princesa de Gales. Não foi preciso tomar a Bastilha nem assaltar o Palácio de Inverno, bastou ser capa de todas as revistas do mundo. Mesmo não acreditando na actualidade de um regime monárquico, reconheço que há, nas monarquias constitucionais e pacificamente aceites, um elemento de estabilidade e de continuidade nacional que cumpre uma função de interesse público. Basta pensar no quanto a restauração da Monarquia espanhola contribuiu para a restauração democrática em Madrid, ou atentar no facto de todos os países da Escandinávia -- os mais desenvolvidos e modernos da Europa -- serem monarquias constitucionais, para ser forçado a reconhecer que o sistema desempenha, com sucesso, uma função estabilizadora. Só que o reverso da medalha é que a monarquia tem regras das quais depende a sua própria essência. E, entre estas, as principais são as regras da sucessão, que não são alteráveis pelos humores da opinião pública. No dia em que o povo puder escolher o rei, a monarquia perde a sua força de símbolo popular, ou seja, perde a sua razão de ser. O que há de hipócrita no endeusamento em vida e em morte de Diana é que a imprensa popular que o fomenta e a opinião pública que a segue alimentam-se ambas de toda a carga simbólica que a monarquia representa. Isto é, eles estão inconscientemente a subverter a instituição que faz viver uns e que faz sonhar outros. Atentos ao que verdadeiramente está em causa, dois jornais "sérios" -- o "Times" e o "Sunday Telegraph" -- traziam no domingo um título semelhante, encimando a fotografia do corpo de Diana a desembarcar em Londres: "Prince brings Diana home". Como se escrevessem: "Esta é a ordem constitucional das coisas". Mas Tony Blair, a imprensa popular e o povo apropriaram-se do corpo de Diana e remeteram a família real para o silêncio do palácio, onde os acusam de estar encerrados. A "Princesa do Povo" afastou o príncipe de Gales. Mas é infinitamente mais fácil, nas monarquias de hoje, expostas na praça pública, ser-se "Princesa do Povo" do que príncipe de Gales. A lógica das coisas deveria levar a multidão de Kensington e a imprensa que a formou a exigirem agora o fim da Monarquia. Mas, depois, de que viveriam uns e outros? |
* Jornal "Público". (Portugal)