A galáxia de Diana

João Amaral*. Deputado pelo PCP            Jornal de Notícias 05/09/1997

A vida e a morte da esmagadora maioria das pessoas têm pouco que contar. Nasce-se numa família que vive num qualquer andar de um qualquer bairro, tiram-se umas fotos em bébe que vão amarelecendo, até já não se saber bem de quem são, passa-se por escolas que não deixam saudades, acaba-se num qualquer emprego, suado e tristonho, depois vem o tal qualquer andar de um qualquer bairro, o casamento, os filhos para continuarem o ciclo e, no fim da linha, os penosos anos da reforma, até à morte, funeral rápido e barato, algumas lágrimas, depois o esquecimento eterno e definitivo. Uma vida assim pode ser insuportável. Pode gerar, quem sabe, sentimentos de revolta tão profundos e exacerbados que a "ordem estabelecida" seria posta em perigo. As injustiças do mundo são muitas e gritantes; não faltam razões para temer o pior! Desde sempre o poder cuidou dos mecanismos para a sua defesa. E desde sempre o poder soube que não basta uma boa Polícia. A pior subversão da ordem estabelecida não é a que se organiza e por isso pode ser vigiada, catalogada, perseguida e reprimida. A pior subversão é a que vem de dentro da alma de cada um, a que torna um qualquer cidadão num ser inquieto e inconformado e que o atinge de tal maneira que um dia acha que o mundo deve ser transformado e que ele próprio, cidadão de vida apagada, pode ser um herói dessa transformação. Para combater o perigo iminente de uma tal subversão, o poder quer o povo bem distraído. Todos os tostões gastos para divertir o povo foram para o poder sempre tostões bem gastos. Nos fundamentos da nossa civilização, greco-romana, os jogos tiveram sempre um papel determinante. Os gregos ficaram na História da antiguidade por muitas razões, entre elas a realização de jogos como as olimpíadas. E os romanos nas cidades que construíram durante a expansão imperial nunca esqueciam teatros, hipódromos e circos. Esta necessidade de distrair o povo veio pelos tempos fora, sempre de mão dada com as injustiças do mundo. Até uma figura de clausura e seminário, como a de Salazar, teve isso bem presente. Vale a pena recordar a política dos três efes (fado, futebol e Fátima), que uma certa oposição, agnóstica e positivista, diagnosticava durante a ditadura como o mal da Nação...

Mas um dos espectáculos mais barato e eficazes que o poder pode oferecer ao povo é o espectáculo do seu próprio fausto. Assim foi ao longo da História: os mais célebres espectáculos de Roma foram os espectáculos dos generais vencedores, entrando na cidade à frente das legiões, e do lustroso cortejo de troféus de guerra, incluindo os milhares de escravos que sustentavam a glória do Império. O espectáculo do poder está na grandiosidade dos palácios, na riqueza e na ostentação das vestes, na grandeza e na variedade das cortes, tudo exibido em cerimónias tão belas, tão bem ensaiadas, tão perfeitas que têm de lembrar a harmonia do céu e o poder divino. Um povo com tais dirigentes tem com que sonhar. Tem de que falar. Pode mesmo apagar o seu quotidiano triste com histórias de príncipes, histórias complexas e inacessíveis, que criam as emoções que o quotidiano não dá. Esta é a galáxia do poder. É a galáxia onde nasceu, viveu e morreu Diana Spencer. Diana não nasceu de uma família anónima de um qualquer bairro de uma qualquer cidade. Diana tem o seu berço de ouro: ela é a filha do 8.º conde de Spencer. Diana viveu como só os muito ricos podem fazer. Mesmo os seus últimos dias - ficam as lindas imagens de Diana a subir para um jacto privado na Sardenha, a caminho de Paris. E depois o último jantar no Ritz, um dos mais caros restaurantes do mundo. Diana não foi a enterrar no serviço de uma qualquer agência, com um velório numa capela pouco limpa e lúgubre, um caixão modesto, uma missa dita à pressa, com o padre a perguntar como se chamava o falecido. Não: o funeral de Diana foi o maior espectáculo do mundo. Foi o espectáculo do ano. Foi o espectáculo do poder. Num tempo dominado pelos meios de comunicação social, tudo foi feito ao ritmo das suas necessidades. Criaram-se as bruxas, primeiro os "paparazzi", depois a família real, com Isabel II transformada numa megera. A vida de Diana, que foi espiolhada ao longo dos anos nos seus aspectos mais controversos, foi subitamente branqueada, "angelizada", quase santificada. Ao longo da semana, a seguir ao acidente, a comunicação social organizou um conflito com a família real, pôs Carlos a discutir com o secretário da Rainha, criou o incidente da bandeira, entrevistou tudo e todos que de perto ou de longe se tivessem relacionado com Diana. Os jornais duplicaram tiragens, as rádios encheram-se de "relatos" dos passos dos actores do espectáculo, para as televisões foi um festim. O trabalho da cobertura do funeral, a localização das câmaras na catedral, o acompanhamento de todas e cada uma das principais personagens do drama - tudo isso ficará para sempre como um dos mais brilhantes espectáculos de televisão que alguma vez foi realizado. Mas, no "espectáculo da morte", a comunicação social introduziu um registo novo. Durante anos, o espectáculo de Diana foi a sua futilidade: os desencontros amorosos, os choques com a família do ex-marido, as infidelidades promovidas a exemplo, os vestidos e as jóias de luxo, as faustosas festas de caridade de centenas de organizações. Com a sua morte, Diana mudou, para mãe carinhosa e protectora, mulher infeliz, perseguida pela sogra, cidadã preocupada com os grandes males do Mundo, disponível para causas tão justas e perigosas como a da eliminação das minas antipessoais. Assim, durante anos, a comunicação social promoveu o espectáculo do poder utilizando e devassando a vida privada de Diana e mostrando-a sedutora e aventureira e apelando, portanto, para promover o espectáculo, a baixos sentimentos humanos, como a coscuvilhice e a maledicência.

Mas essa mesma comunicação social, para promover o "espectáculo da morte", vem agora construir uma Diana que é simultaneamente vítima e cidadã socialmente empenhada, apelando assim a nobres sentimentos humanos: o desejo da paz, o respeito pela vida e pelas pessoas, o apoio às vítimas e aos mais fracos. As multidões que beberam imagem a imagem o funeral de Diana, que se preocuparam com os seus filhos, que condenaram os "paparazzi", que pensaram com emoção nas vítimas da guerra e da doença objecto da acção de organizações humanitárias que Diana apoiou - essas multidões comungaram um raro momento de bondade e beleza interior. Hoje, já é o dia seguinte. Já se procuram outros príncipes e princesas. Já outras histórias correm em milhões de exemplares de revistas do coração. Já outros espectáculos se organizam. The "show must go on!" - o espectáculo tem de continuar! São assim os mecanismos do poder enquanto a injustiça for a base da organização da sociedade.

  *Artigo de opinião respigado do saite do Jornal de Notícias (Portugal)
 

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