A força dos tablóides |
Argemiro Ferreira* Jornal de Notícias 04/09/1997
Em 1947, a Comissão Hutchins, integrada por personalidades de alto nível, chamou a atenção para os desvios cometidos pela Imprensa nos Estados Unidos. Meio século depois, um grupo de 28 repórteres, editores e professores de jornalismo, após semanas de discussões, reafirma a preocupação e esforça-se por definir os objectivos da profissão e aperfeiçoá-la. Em princípio não haveria nenhuma declaração formal, mas decidiu-se adoptá-la correspondendo à sugestão de um dos participantes - Bill Kovach, curador da Fundação Nieman, da Universidade de Harvard, e ex-editor de um jornal. E a declaração servirá agora de ponto de partida para várias reuniões de jornalistas, nos próximos 12 meses, em diferentes pontos dos EUA. Divulgada esta semana, a iniciativa talvez tivesse passado despercebida. Ganhou relevância especial no contexto do debate sobre os excessos atribuídos aos fotógrafos "papparazzi", acusados em Paris de terem contribuído, com a sua perseguição obsessiva e implacável, para o acidente que causou a morte da princesa Diana e mais três pessoas. No documento, os signatários - entre eles os jornalistas Elizabeth Arnold, da rádio, Bob Herbert, colunista do "New York Times", Peter Osnos, executivo de uma editora, e Max King, editor do "Philadelphia Inquirer" - declaram-se preocupados com o futuro do jornalismo, numa altura em que entretenimento e sensacionalismo se sobrepõem à seriedade nas coberturas informativas. "O público fragmenta-se e as nossas empresas diversificam-se, enquanto cresce o debate, dentro das próprias organizações jornalísticas, sobre a nossa responsabilidade no campo empresarial e a nossa responsabilidade como jornalistas", diz o texto, deixando claro, ao mesmo tempo, que as dúvidas sobre a actividade da imprensa já provocam mudanças internas na indústria. O JORNALISMO EM QUESTÃO Muitos jornalistas, de acordo com a declaração, queixam-se de uma perda de perspectiva na imprensa: "Há até uma dúvida sobre o significado da notícia, dúvida evidente quando organizações jornalísticas vagam entre a opinião, a informação-entretenimento (no original, 'infotainment') e certa sensação de desequilíbrio nas notícias". Para os estudiosos de jornalismo, a declaração segue claramente os padrões do estudo feito em 1947 pela comissão de alto nível criada e financiada pelo fundador do império Time-Life, Henry Luce, e encabeçada pelo respeitado educador Robert Maynard Hutchins. Entre outras coisas, a Comissão Hutchins fez as seguintes afirmações: "A Imprensa moderna é um fenómeno novo. (...) Os veículos de comunicação de massa tanto podem facilitar o pensamento e a discussão, como podem dificultá-lo. Podem empurrar o progresso da civilização, como podem emperrá-lo. Podem degradar e vulgarizar a humanidade. Podem pôr em risco a paz no mundo, por acidente ou por falta de consciência. "Podem exagerar ou aviltar a notícia e o seu significado, forjar e alimentar emoções, criar ficções complacentes e pontos cegos, abusar das palavras nobres e exaltar slogans vazios. Tais instrumentos podem espalhar mentiras a velocidade maior e a lugares mais distantes do que sonharam aqueles que consagraram a liberdade de imprensa na Primeira Emenda à Constituição". A Comissão Hutchins já exigia responsabilidade da parte dos "media" quando a televisão ainda dava os primeiros passos. E já temia que a concentração da propriedade dos meios de comunicação nas mãos de um número cada vez menor de empresas pudesse resultar num monopólio de ideias e na incapacidade de elementos variados da democracia comunicarem livremente entre si. Nos últimos anos a tese de entidades dedicadas à defesa da Primeira Emenda é de que não se pode exigir responsabilidade aos órgãos de comunicação social, como faz com frequência a Igreja Católica e o seu Sumo Pontífice, pois isso equivaleria a restringir a própria liberdade de imprensa. Segundo esse argumento, as próprias leis do mercado se encarregam de punir os que praticam abusos. Críticos dos "media" respondem que as tiragens elevadas dos tablóides de escândalo, mexericos e entretenimento já afectam os padrões dos mais respeitáveis órgãos de informação - alguns dos quais, inclusive o austero "New York Times", foram recentemente acusados de imitar os tablóides na cobertura do julgamento na Califórnia do ex-ídolo do futebol americano O. J. Simpson. OS MAUS DA FITA As grandes redes de TV têm cada vez maior número de programas estilo "jornalismo tablóide", dedicados a crimes, escândalos e mexericos. A CBS e a NBC apresentam tais programas - cujas produtoras, às vezes independentes, pagam fortunas pelas imagens dos cinegrafistas "paparazzi" - imediatamente depois do principal noticiário da noite. Apesar de serem retratados como os grandes vilões, os "paparazzi" só existem porque há procura no mercado para o seu trabalho. São as leis do mercado que encorajam os excessos, já que a procura nem sequer está limitada aos tablóides - estende-se naturalmente, e cada vez mais, aos grandes jornais e às redes supostamente bem comportadas. Isso explica a preocupação manifestada esta semana na declaração formal dos 28 repórteres, editores e professores de jornalismo, que destacaram a contradição entre os interesses dos veículos como empresa empenhada em produzir lucros e a responsabilidade dos profissionais comprometidos com a verdade e o exercício sério do ofício de jornalista. Os signatários dessa declaração de 1997 formaram comissão de grupos e pessoas preocupados com a questão, sob a presidência de Bill Kovach e a coordenação do Project for Excellence in Journalism - sediado em Washington, com apoio e recursos do Pew Charitable Trusts, e filiado à Universidade de Columbia. |
*Argemiro Ferreira é correspondente em Nova Iorque
do Jornal de Notícias (Portugal)