Madame Bovary e Lady Di

Há, pelos vistos, quem pague para ter a reconfortante certeza que há gente feliz.

António-Pedro Vasconcelos*              O Independente    5/09/1997

Desde o dia em que o responsável  do VIDA entendeu que era altura de eu deixar de escrever sobre futebol para escrever sobre "outras coisas", deparei- me com um dilema semanal: deveria tentar interessar os outros pelo que me interessa, ou tentar interessar-me pelo que interessa aos outros? Na dúvida, e na ausência de referências sólidas sobre o que, realmente, "interessa aos outros", fui escrevendo sobre o que me interessa, a mim. Até que, esta semana, deparei com um artigo no Expresso, com chamada à primeira página, onde se esclarece que as "revistas sociais atingem quase 1 milhão" de exemplares em Portugal: Gente, Caras, Nova e VIP  partilham entre si esse mercado colossal de leitores, país que os cronistas e as sondagen insistem em considerar de iletrados.  Passei a saber, eu que andava, pelos vistos, distraído com futilidades, o que interessa à maioria dos meus concidadãos: casamentos, divórcios e flirts de gente famosa. Semanalmente, modelos, actores, cantores, empresários, decoradores, futebolistas, membros das famílias reais abrem as portas das suas casas, exibem os seus sorrisos e revelam os seus gostos mais frívolos a fotógrafos e jornalistas de serviço, que vêem neles a confirmação de uma certeza antiga: a de que a felicidade é fotogénica.  Nada me garante que os consumidores de mexericos leiam as revistas "sociais"; é provável que muitos deles se limitem a ver as fotografias. Mas o que é certo é que passei a ter uma referência clara sobre as preferências de consumo dos portugueses, que, de resto, não devem divergir muito dos gostos dos indígenas de Espanha ou de Inglaterra, no domínio do papel impresso. 

Domingo de manhã, para surpresa da menina do quiosque, que se preparava para me entregar, como de costume, um solitário DN, pedi-lhe que me desse também um exemplar de cada uma dessas revistas que falam abundantemente dessa gente rica e de sucesso. Olhou para mim com o ar de quem achava que a única razão para a minha súbita conversão era que eu me tinha tornado colunável. Pensou, de certo, que eu vinha reproduzido, bronzeado e a cores, ao lado de Lili Caneças ou do Marco Paulo, o que passaria a ser um motivo de orgulho para aquela simpática Cinderela, que cresceu a vender jornais, atrás do balcão sombrio de um quiosque, onde consome a sua beleza triste e as suas pobres ilusões de ganhar, um dia, o Totoloto.  Ao folhear as revistas, descobri um mundo secreto, cujas ambições e prazeres tentei descortinar. Descobri gente que a minha colossal ignorância desconhecia, VIPs portugueses que, por ocultas razões, o são, e que emparceiram, nas páginas das revistas, com o Jet Set  nacional.  Não me espanta que os italianos e os espanhóis admirem os seus cantores de ópera, os seus deuses do estádio, os seus corredores de automóveis, os seus grandes patrões, os seus costureiros e os seus actores, porque vêm neles versões modernas de Hércules e de Mercúrio, de Diana e de Vénus, de Eros e de Apolo, que alimentam o orgulho nacional. Mas descobri, com espanto, que há também um Jet Set  português, uma versão doméstica do grande mundo da fortuna e da fama que, por um artifício da paginação, partilha a popularidade com essa gente famosa, e cujos méritos tenho dificuldade em descortinar.  O mais estranho é que a felicidade aparente dessa miscelânea de eleitos não provoca a inveja, mas a admiração de quem compra gulosamente as revistas, e que, em muitos casos, ganha penosamente a sua vida. Há, pelos vistos, quem pague para ter a reconfortante certeza que há gente feliz. 

Quando cheguei a casa com aquela braçada de revistas inéditas, pronto a descortinar a razão da curiosidade de 10% dos meus compatriotas pela vida privada dos seus ídolos, liguei a televisão. Sem perceber porquê, as estações de todo o mundo mostravam obsessivamente imagens de Lady Di. É verdade que todas as revistas que eu comprara tinham uma notícia em comum: o namoro, a bordo do Jonikal, da ex-princesa de Gales com o filho do milionário egípcio que comprara o Harrod's e arrebatara a mais elegante, a mais cobiçada e a mais sexy das mulheres do planeta. De repente, percebi o que se tinha passado: para fugir à perseguição dos paparazzi, que Fellini popularizara no Dolce Vita, os dois tinham morrido num desastre de automóvel, num túnel sob o Pont d'Alma, em Paris, a capital do glamour e do amor galante.  Depois de Versace, morto a tiro, em Miami, por um "prostituto de luxo", foi a vez de Lady Di sucumbir à mórbida curiosidade de uma matilha de fotógrafos que tentavam roubar-lhe, a ela e ao seu amante, a prova incontestável da felicidade e da paixão. 

Diana era uma espécie de super modelo, que chegara à corte da mais velha monarquia do mundo, e que, noutros tempos, teria sido, talvez, nas mãos de Hitchcock ou de Visconti, uma actriz. E Versace, um costureiro arrojado, que descobrira o modo de lisonjear os mais perversos sonhos de alcova das mulheres burguesas, que, noutros tempos, teria sido, se calhar, um pintor. Deuses da moda, por mais atraentes que fossem as suas poses e as suas criações, nenhum deles, nem Diana nem Versacce, criou nada de durável porque, como disse um dia Coco Chanel, "la mode c'est ce qui se démode" ("a moda é o que passa de moda"). Mas, talvez por isso, a sua vida e a sua morte vendem milhões de revistas e alimentam horas intermináveis dos noticiários da TV.  Ora, foi precisamente num canal de TV, que eu percebi, enfim, as razões que levam 10% dos portugueses a comprar todas as semanas "revistas sociais", onde as pessoas invariavelmente sorriem para a objectiva e exibem toilettes extravagantes e sofisticadas. Foi quando uma senhora de meia idade e da classe média, entrevistada em frente de um quiosque, explicou a razão da sua preferência por este tipo de literatura ilustrada: "gosto" - disse ela - "de ver pessoas bem vestidas". Versace sabia vestir as mulheres, Lady Di sabia vestir-se, e elevaram-se, por isso, acima do comum dos mortais.  Mas, sejamos justos. Cada época queixa-se ciclicamente da decadência dos seus costumes. Nós queixamo-nos da frivolidade deste fim do século, esquecendo-nos, afinal, que todas as épocas tiveram as suas Bovarys, que sonharam com bailes na capital e com um belo amante, isto é, com uma ilusão de felicidade. Este século, se calhar, não é muito diferente. O que nos falta é um novo Flaubert, capaz de recomeçar dezassete vezes um parágrafo e de arruinar a saúde para descobrir a música da língua, e para nos mostrar a trágica pequenez dos sonhos de Lady Di. 

  *Texto publicado no Caderno VIDA do semanário O Independente (Portugal)
 

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