Bestiário

A morte da Princesa de Gales permitiu que se descobrisse em Portugal a existência de um terrível enigma, que dá pelo nome de Carlos Ventura Martins. Sem que ninguém desconfiasse, andam por aí à solta várias personagens com esse nome, e o mistério desta pecaminosa trindade veio à luz do dia quando um Carlos Ventura Martins, apresentado como "Director-Geral" das publicações Impala, que editam entre vinte e duas outras folhas de couve a Nova Gente, a Maria e a VIP, compareceu na SIC para defender a imprensa de coração das acusações de terem as mão sujas com o sangue da princesa. Este Carlos Ventura Martins não pode, com toda a certeza, ser o mesmo Carlos Ventura Martins que foi, durante dois mandatos consecutivos, assessor de Imprensa do ex-presidente Mário Soares. Ninguém de bom senso consegue acreditar que o nosso ex-presidente tenha, durante mais de oito anos, confiado todos os seus segredos íntimos e de Estado a uma criatura que agora é director-geral de um grupo económico especializado na imprensa cor-de-rosa, na coscuvilhice e devassa da vida privada de cada um e na divulgação dos segredos e escândalos da alta sociedade. Por muito poucos segredos de que o Carlos Ventura Martins, o assessor, tivesse tido conhecimento durante essa longa permanência junto das mais altas esferas do poder e da intriga política, e não devem com toda a certeza ter sido poucos, isso daria a Carlos Ventura Martins, o director-geral, um poder de influência e mesmo chantagem sobre o resto dos seus concidadãos, em especial daqueles mais em evidência no jet set e no mundo político, sobre os quais recai naturalmente a curiosidade mórbida da populaça que alimenta este género de imprensa. O Carlos Ventura Martins, o assessor, não pode portanto ser o mesmo Carlos Ventura Martins, o director-geral, que apareceu na SIC. Mas a confusão adensa-se quando o Diário de Notícias informa não ter conseguido contactar um outro Carlos Ventura Martins, igualmente apresentado como "Director-Geral" do grupo Impala, na sequência da suspensão no Domingo de madrugada da distribuição do último número da Nova Gente, cuja capa era uma fotografia de Diana e Dodi em fato de banho, a bordo do iate do playboy egípcio, com a manchete Diana e Dodi - casamento para breve. Segundo o DN, a Nova Gente prometia mesmo "as últimas fotos" do casal, gabando-se mesmo de se tratar de "um grande exclusivo". A capa da revista acabou por ser mudada, mantendo-se a fotografia de Diana e Dodi em fato de banho no iate, mas mudando o título para "as últimas fotos" ou qualquer coisa parecida (peço desculpa pela imprecisão, mas um vómito súbito impediu-me de comprar a revista). A razão que me leva a julgar estarmos perante um caso de dupla identidade, talvez até de esquizofrenia, é que o Carlos Ventura Martins que apareceu na televisão como director-geral não pode ser o mesmo Carlos Ventura Martins, director-geral, que evitou responder às perguntas do Diário de Notícias, pela simples razão que o Carlos Ventura Martins que apareceu na televisão afirmou repetidas vezes que as publicações reles do grupo de imprensa que se gabava de dirigir nunca publicariam fotografias que não fossem autorizadas pelos visados. Ou seja, qualquer publicação dirigida por Carlos Ventura Martins nunca publicaria fotografias da intimidade de Diana e do seu namorado, obtidas ilegitimamente com tele-objectivas, à revelia dos visados, e publicadas sem o consentimento destes. Mas isso, é claro, é o que diz o Carlos Ventura Martins que apareceu corajosamente na televisão. Já o outro director-geral Carlos Ventura Martins, que publica vampirescamente as fotos obtidas pelos paparazzi que, directa ou indirectamente, acabaram por provocar o trágico acidente em Paris, não diz nada. Esconde-se cobardemente atrás da telefonista e manda dizer que está "em reunião". Mas é óbvio, infelizmente, que não estamos perante um louco ou alguém com um sentido de humor muito próprio que anda pelo país fora disfarçado de Carlos Ventura Martins e a fazer-se passar por director-geral do grupo Impala. O Carlos Ventura Martins ex-assessor, o Carlos Ventura Martins que garantiu à SIC que só publicava fotografias íntimas com a autorização dos próprios e o Carlos Ventura Martins que publica fotografias ilegítimas de Diana em fato-de-banho com o seu namorado no dia seguinte à sua morte, são um e o mesmo Carlos Ventura Martins. Não sei o que é que o resto do País tenciona fazer a este respeito, se é que tenciona fazer alguma coisa. Pela parte que me toca, vou com algum esforço comprar um exemplar da Nova Gente para, na eventualidade que espero não venha a acontecer, me cruzar um dia com Carlos Ventura Martins, seja qual for a identidade que esta repelente criatura venha a assumir nesse instante, estar municiado com um bocado de trampa para lhe atirar à cara.