Não foi por acaso que Tony Blair chamou a Diana a "princesa do povo". Ela, de facto, pertencia ao povo que a fabricara - comprando os tablóides

Vasco Pulido Valente*              O Independente    5/09/1997

A MORTE DA PRINCESA DIANA - Perante o espectáculo de sentimentalismo e de hipocrisia que nos ofereceram os média do mundo inteiro e a que eu assisti embasbacado, não resisto a meter a minha colherada. Indo por partes.

O desastre - Ao princípio fora indubitavelmente culpa dos paparazzi. Convém sempre encontrar um bode expiatório. Ninguém observou que andar em Paris a 190 quilómetros por hora era um acto de irresponsabilidade, sem justificação possível. Imaginemos que, em vez de bater no pilar de um túnel, o Mercedes da princesa tinha esmigalhado um peão ou alguns inocentes num daqueles Renaults de lata dos pobrezinhos: o que diriam os comentadores de serviço? Agora, ainda por cima, a polícia francesa apurou que o chofer estava bêbado. No meio de tudo isto, onde pára a tragédia?

Os paparazzi -Desde o primeiro minuto que a "boa imprensa" sacudiu apressadamente a "culpa". Aparentemente entre ela e os paparazzi (os "abutres", as "ratazanas") existe um abismo. Como se a "boa imprensa" não explorasse, invariavelmellte, o lixo da "má". Como se, também ela, não vivesse do crime, da catástrofe e da espúria fama de meia dúzia de criaturas. Tirem o sangue, o sexo e o dinheiro e não sobra nada (ou sobra muito pouco) da "boa imprensa". As folhas da "classe média" nunca pagaram 200 mil contos por uma fotografia da princesa? Pois não. Deixemos a Inglaterra e a Anérica. E aqui, em Portugal, as secções do boato e da pequena perfídia? E o milhão de leitores de quatro revistas, que docemente se declaram "mundanas"? ("Mundanas"?). E as belas aberturas do telejornal da RTP e do telejornal da SIC, com vários corpinhos carbonizados algures numa auto-estrada ou duas facadas em Alguidares de Baixo? Não senhor, os paparazzi, os "abutres", as "ratazanas", são evidentemente os outros.

Direito à privacidade - Certamente por causa da sua profunda tristeza, nenhum sábio dos média se atreveu a estabelecer que a diáfana Diana abandonou o direito à privacidade por sua livre vontade. Promoveu a publicação de um extraordinário livro contra o príncipe Carlos. E acabou na BBC a contar as suas querelas conjugais, numa entrevista que oscilava entre a histeria, a vingança e a pura mendicidade. Lavada a roupa suja em público, esperava ela que dali em diante a respeitassem?

O "anjo de caridade" e a "vítima dos jornais" - Havia a Diana da bulimiia, dos suicídios, do divórcio, dos namorados, do "escândalo", da Vanity Fair; e havia a Diana - "anjo de caridade". As duas não são separáveis. Pelo contrário, a Diana do "escândalo" suportava a Diana - "anjo de caridade". As pessoas gostavam era do melodrama. Se ela se limitasse ao seu tão celebrado "trabalho", não lhe dariam qualquer importância. D. Duarte Nuno comentou - miraculosamente com razão - que, por exemplo, o "trabalho" da princesa Ana não comove os média, falta o romance de cordel. Diana precisava dos tablóides para vender as suas "campanhas". E tanto ela como os tablóides o sabiam.

Democracia e totalitarismo - Paulo Portas lamentou que a intrusão na privacidade esteja a transformar a democracia em totalitarismo. Paulo Portas ignora sem dúvida que a democracia é o mais totalitário dos regimes: o regime em que toda a gente manda em toda gente e, portanto, espia toda a gente. Não foi por acaso que Tony Blair chamou a Diana a "princesa do povo". Ela, de facto, pertencia ao povo que a fabricara - comprando os tablóides.

O papel - A princesa Diana passou a vida obcecada com o seu "papel". Um "papel" público, claro, imensamente público. O narcisismo e o exibicionismo da senhora furavam os olhos. Segundo confessou, pretendia ser a "rainha dos corações". E, à sua maneira, conseguiu. Domingo, os "média" não se cansaram de a comparar a James Dean, Elvis Presley, Che Guevara, Eva Péron e mais beneméritos. Bela companhia.

  *Texto publicado no Caderno VIDA do semanário O Independente (Portugal)
 

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