Um erro político |
A ira perante a devassa será, infelizmente, conjuntural. No mundo em que vivemos, os "novos heróis" são invariavelmente efémeros e fúteis. A top model substituiu o filósofo, a estrela de TV tomou o lugar do escritor, qualquer espécie de playboy faz a vez do general ou do almirante das grandes batalhas
Paulo Portas* O Independente 5/09/1997
Tony Blair, afinal, ainda é trabalhista. O clone de Clinton na Europa fez, sobre Diana Spencer, a mais devastadora afirmação política. Poucos a notaram, pois vinha embrulhada em condolências sinceras. Ao classificar a Princesa de Gales como princesa do povo, Blair não se limitou a descobrir um epitáfio que, num ápice, correu mundo e ganhou foro. A escolha desse título "plebeu" não foi inocente. Representa um espírito populista, em confronto com a instituição real que está em crise. E significa um óbvio ataque de classe - no caso, em nome da "classe média" -, contra uma monarquia que ainda garante, no topo do Estado, a cultura de outra classe, a aristocracia, e a sua ordem social baeada em hierarquias naturais. Não sei se Tony Blair é republicano. Mas sei que, além dos prejuízos causados à tradição pela família real, nada causou mais dano à Rainha do que esta frase do seu leal primeiro-ministro. A morte de Diana e as suas circunstâncias forçaram o debate sobre a privacidade das figuras públicas e célebres. A ira perante a devassa será, infelizmente, conjuntural. No mundo em que vivemos, os "novos heróis" são invariavelmente efémeros e fúteis. A top model substituiu o filósofo, a estrela de TV tomou o lugar do escritor, qualquer espécie de playboy faz a vez do general ou do almirante das grandes batalhas. O exibicionismo é a arma dessas figuras de culto tão típicas da "modernidade". Inteiramente desapossada de noções antigas de respeito ou mera exigência, a opinião pública consome, com voragem, as paixões e as tragédias, as glórias e os lutos, as declarações e as insinuações deste novo pessoal. Na era "global" e visual, o clima é hedonista e o marketing é rei. Ninguém deve, portanto, admirar-se com os paparazzi: eles são os "dealers" neste mercado dos afectos. As fronteiras do público e do privado, do importante e do acessório, do violento e do normal, foram derrubadas, em nome duma lógica pateticamente "democrática", em que vinga uma espécie de "direito colectivo" à observação dos sentimentos alheios. Mas o que efectivamente procede é um espírito totalitário, em que a privacidade perde garantias e a sua defesa acaba por se tornar, mesmo, politicamente incorrecta. O sociologismo dominante explica o fenómeno como uma transferência de sonhos: milhões de pessoas com uma vida remediada, maçadora ou desinteressante, gostam de "participar", virtual e até falsamente, nas aventuras de algumas pessoas que julgam são ricas, divertidas ou interessantes. Tudo isto se percebe. O que nunca se perceberá é a entrada da família real britânica no circuito. Se fossem os monegascos, ainda vá. Mas os Windsor? Há uma lamentável confusão que leva os comentadores a falar em "monarquias modernas". A Coroa, como instituição política, sofreu adaptações e foi obrigada a fazer transigências: para resumir as coisas ao mais recente, as monarquias tornaram-se constitucionais, aceitando a soberania popular, a representação democrática e a limitação de poderes. As famílias reais que vão atravessar o milénio são essencialmente simbólicas. É no simbolismo que assenta a sua necessidade e vantagem: ou porque unem nações desunidas, ou porque institucionalizam regimes neófitos, ou porque oferecem o equilíbrio do passado aos humores das maiorias, ou porque, simplesmente, conservam o Estado e a Nação, uma função imaterial mas permanente e persistente. Porém, o carácter simbólico das monarquias, com o respectivo acervo de poderes e benefícios régios perdidos, não é sinónimo de "aburguesamento" do trono e seus hábitos. Nisso, a monarquia é como a Igreja - não precisa de andar à frente do seu relógio, pode perder-se se quiser ser manchette diariamente e só sobrevive se representar o tempo histórico. Equivocamente, associa-se monarquia popular a monarquia vulgar. Mas na crua verdade das coisas, um módico de altivez, um pouco de distância e muita sobriedade são geneticamente familiares à instituição real. O que a distingue do star system é não aparecer, não tagarelar, não escandalizar. Por isso se fala na especial educação dos príncipes, onde a par da ciência política e das coisas do reino, se aprende a disciplina da contenção, a tabuada da paciência e a gramática da descrição. Também por isso, a sucessão e os casamentos reais são matérias de Estado, com regras próprias, por vezes aparentemente desumanas, quase sempre politicamente eficientes. De tudo o que aconteceu na família real britânica, independentemente da maior simpatia pelo partido carlista ou pelo partido dianista, só pode tirar-se uma conclusão: o "casamento do século" foi um terrível erro político. E os maiores responsáveis são os que tinham a responsabilidade de conservar a Coroa. A partir de Carlos e Diana, a monarquia perdeu invulgaridade e a imunidade. No preciso momento em que o casamento de Estado, não necessariamente amoroso, nem belo, menos ainda espectacular, foi substituído por um "idílio burguês" para revenda em milhões de corações, Buckingham Palace alugou o seu futuro a uma paixão aleatória que atingiria proporções de Corin Tellado, para desgraça da velha monarquia. Inúmeras tendências da vida contemporânea assaltaram, então, o que deveria ter sempre sido uma questão reservada, estando em causa, como está, a chefia do Estado e da Igreja anglicana. E uma instituição secular viu-se consumida numa década de romances espalhafatosos, confissões em directo, acusações mútuas, maldades encomendadas, tudo em tom jet-set, o tom mais estranho à fidalguia, e em espiral sentimental, a espiral menos conveniente para a causa pública. Dir-se-á que a monarquia tem de se "actualizar". Politicamente, já o fez há muito tempo. Socialmente, não deve fazê-lo, porque perde identidade, confunde prioridades e entristece os súbditos. Procurar em cada princesa uma Jacqueline Onassis, e fazer de cada Rei um Philipe Junot, pode proporcionar momentos de "encanto". Mas o essencial - a continuidade histórica -, entra em crise. Em certo sentido, se o Príncipe de Gales tivesse casado com uma princesa do centro da Europa, mesmo feia e se calhar mediana, teria poupado o Reino Unido ao pior, e cumprido o seu dever. Ironia da história: a monarquia estaria de boa saúde, Camila nunca seria autorizada a sair da obscuridade e Diana Spencer estaria, ainda hoje, viva. |
*Texto publicado no semanário O Independente
(Portugal)