Privacidades privadas

Há um sentido de decência que tem de ser recuperado, por muito que certas figuras ligadas à televisão apareçam a classificar de "pré-censória" qualquer observação que seja feita nesse sentido

Leonardo Ferraz de Carvalho*              O Independente    5/09/1997

A morte da princesa trouxe à primeira linha a discussão, com alguma amplitude, dos limites da privacidade das figuras públicas. Durante algum tempo ninguém olhará para certas reportagens sem, ao menos, se interrogar sobre a sua legitimidade. Tal como no caso das minas antipessoais, só que agora involuntariamente, Diana potenciou o seu "media-appeal" para trazer para a grande luz assuntos que, no fundo, só eram discutidos por uma minoria. Contudo, devo dizer-lhes que a mim me preocupa mais o problema do enorme desrespeito pela imagem pessoal e pela privacidade dos anónimos, que a televisão, em especial, pratica crescentemente. Até porque pouca gente parece preocupar-se com isso, nem, obviamente, têm quem com eles se preocupe. Há dias, o Herald Tribune trazia, na sua segunda página, um grande artigo sobre um caso que está agora nos tribunais americanos. Uma senhora, que sofreu um acidente em que ficou paraplégica, foi filmada detalhadamente, presa nos destroços do carro, enquanto se contorcia e ia aparecendo na sua cara o terror de perceber que estava paralítica. Esta cena foi transmitida incessantemente pela televisão, inclusive meses depois. Ela queixou-se a um tribunal, pedindo a destruição do filme, que "corresponde ao momento mais trágico da minha vida e que eu não quero ver exibido publicamente". O jornal secundava, num artigo de opinião, o direito da ofendida à intimidade de uma tal tragédia, tanto mais que se tratava de alguém que nem remotamente poderia ser considerada "figura pública". Curiosamente, na página um desse jornal, justamente na contraface dos artigos anteriores, aparecia uma enorme fotografia da cara de uma senhora norte-coreana, no exacto momento em que lia o nome da sua filha única numa lista de vítimas mortais da queda de um jacto. Quantos dólares custou ao jornal essa fotografia? Por mim, se eu - ou alguém que eu ame - morrer num desastre de estrada ou noutro acidente da via pública, acho muito firmemente que temos o direito de não ser filmados para transmissão à hora do frango, em trinta segundos, logo a seguir à novela. E você, caro leitor, o que acha? Quando digo "nós", falo também de uma norte-coreana de meia-idade cuja vida acaba de ser destroçada, de um operário cabo-verdiano esmagado nalgum viaduto ou de uma criança orfã de uma mãe "alternadeira" queimada viva na véspera! Há um sentido de decência que tem de ser recuperado, por muito que certas figuras ligadas à televisão apareçam a classificar de "pré-censória" qualquer observação que seja feita nesse sentido.

  *Texto publicado no semanário O Independente (Portugal)
 

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