Exercícios de hipocrisia.

Ela não foi vítima da imprensa, mas de um tipo bastante especial de jornalismo, que se volta contra um tipo especial de vida.

Luiz Garcia*           O Globo 1/09/1997

O paparazzo é companheiro de berçário da doce vida retratada por Fellini: nasceu como um fenómeno europeu nos anos 50, e começou a viajar pelo mundo quando o café-society descobriu o avião e se transformou em jet set. Esse tipo peculiar de fotógrafo free lance especializado no sensacionalismo associado a celebridades evidentemente só existe onde há celebridades engajadas em atividades supostamente sensacionais. E há uma medida de cumplicidade entre o paparazzo e suas vítimas. Em muitos casos, talvez seja uma cumplicidade residual, contrafeita: a estrela foge das cameras que cortejou em seus tempos de estrelinha. Ela tem essa prerrogativa, porque cada um levanta os muros de sua privacidade onde quer e a que altura desejar, e muda os parâmetros quando bem entende. Mas é sempre bom lembrar que o paparazzo não é um corpo inteiramente estranho no meio social em que se movimenta. De qualquer maneira, mais importante do que os laços com os personagens são as suas relações com quem lhe compra as fotos. É muito fácil imaginar a cena da perseguição de Diana e Dodi Fayed por uma matilha de fotógrafos insaciáveis e centralizar no bando todas as nossas reservas de indignação. Mas isso será um exercício hipócrita e inútil se começar e terminar com o que eles fizeram. Não existiriam paparazzi sem uma imprensa sensacionalista. Como são os tablóides ingleses e seus semelhantes em outros países europeus e nos Estados Unidos. Não adianta discutir com esses jornais as nuances do direito à privacidade, porque eles simplesmente ignoram a existência desse direito. Jornais sérios episodicamente invadem a vida particular de pessoas por imaginarem que, naquele caso específico, estabelecia-se a prioridade do interesse público. E alguns jornais que se consideram sérios podem ter critérios elásticos demais na definição do que é interesse público. A verdade é que o estabelecimento de padrões éticos tanto é influenciado pelo desejo de apresentar uma imagem de credibilidade e respeitabilidade como pela vontade de vender mais e mais jornais. A possibilidade de errar pode ser considerável. Nas relações entre paparazzi e tablóides nada disso entra em questão. O free lance apenas sabe que a foto sensacional pode render uma fortuna - e que, sem ela, ele voltará para casa sem um tostão. Imagine-se a que extremos ele poderá ir para flagrar pessoas famosas em circunstâncias comprometedoras. Ou pior, em circunstâncias aparentemente comprometedoras. O flagrante de uma fração de segundo pode criar - e o faz com freqüência - imagens de romances tórridos ou de vergonhosa embriaguez onde possivelmente nada disso existe. É bastante curioso, e vagamente repugnante, que os tablóides e o resto da imprensa inglesa considerem um crime quando um deles, o "Mirror", cria um beijo entre Diana e Fayed, aproximando os seus rostos por manipulação de computador. Por que a gritaria e o recurso aos códigos de ética? Essa foi apenas uma novidade no terreno da deturpação da realidade e da desonestidade de recursos que é o arroz-com-feijão do sistema que alimenta os paparazzi . A morte de Diana, com todos os elementos dramáticos que cercaram a sua vida, é propícia a derramamentos emocionais e julgamentos precipitados. Que fique claro: ela não foi vítima da imprensa, mas de um tipo bastante especial de jornalismo, que se volta contra um tipo especial de vida. E, onde existe, esse jornalismo - melhor dizendo, suposto jornalismo - faz extraordinário sucesso, o que abre caminho para reflexões bastante sóbrias sobre quem está no leme. Ou quem corrompe quem.

 Luiz Garcia é editor de Opinião do jornal " O GLOBO" (Brasil)

*Texto extraído do saite GLOBO ON (Brasil)

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