Fotografia e Texto na Imprensa:
Relações Fortes
TEXTO COMPLEMENTAR
Os jornais de hoje tornaram-se mais "visuais", respondendo aos novos gostos da geração de leitores que já nasceu com a televisão a funcionar, e dos que já nasceram com a televisão multícroma. A televisão, altar do audiovisual que parece só deixar marcas no visual, soterrando a importância do áudio (leia-se do verbo), a tv tornou-se importante factor de influência nas transformações que a imprensa vai sofrer na segunda metade do século XX.
Um dos protagonistas dessas transformações radicais dá pelo nome de fotografia. Hoje, fotografia e escrita dividem entre si o espaço na página; mais do que essa repartição por vezes conflituosa, reportagens há em que a escrita, por mais valor que tenha e bela que seja, sossobra por falta de fotos. Noutros casos, a falta da fotografia relega o texto para páginas menos nobres; sem foto, passa do luxo da página ímpar para a penumbra das páginas pares.Em muitos dos casos, a ausência de fotografia implica também a redução do texto escrito: o "caso espectacular" que o jornalista pretendia narrar despromove-se a pouco mais que uma "breve" por falta do espectáculo fotográfico. Mas o inverso também acontece. Um texto fraco pode merecer honrarias inesperadas porque traz a acompanhá-lo a mais valia de uma foto que "vende". Casos há em que é a fotografia a única razão de ser da notícia. Acontece bastante nas chamadas páginas de fait-divers, não raro polvilhadas de fotos com comentários escritos do género "Palavras para quê?", "Sem comentários".
A força da fotografia pode bem ilustrar-se com o recente caso da compra de fotos "menos próprias" da Princesa Diana. As fotos foram adquiridas pela revista espanhola de mundanices "Hola". Para publicação, um furo fantástico, direito a manchete e vendas a quintuplicar? Que nada, a transação fez-se para impedir a publicação de tais fotos por outra qualquer revista, incluindo aqui a publicação que fez a compra! A "Hola" meteu um furo na gaveta para subir vários furos na estima da mediática princesa, e assim garantir a publicação de outras fotos.
Nos antípodas deste caso da "Hola" encontramos a saga de Lilian Ramos. A moça ganhou dinheiro e fama à custa de uma foto a todos os títulos provocada. Bastou a Lilian colocar-se ao lado do Presidente do Brasil desprovida das elementares cuequinhas - colocação estratégica que possibilitasse ao fotógrafo registar a inusitada ausência de vestuário íntimo-, para a fotografia correr mundo, e quase deitar abaixo mais um presidente brasileiro. Também aqui a fotografia foi essencial para gerar a notícia.
Deixando de lado estes exemplos pouco edificantes da utilização da fotografia, podemos assinalar a força imensa da foto, por exemplo no caso da guerra do Vietname. A fotografia terá desempenhado junto da opinião pública americana um papel de relevo, tendente ao fim das sangrentas hostilidades. Frédéric Lambert recorda a fotografia da jovem vietnamita queimada com napalm, correndo nua, gritando desesperadamente a sua dor: "A fotografia correu mundo, foi primeira página de todos os jornais ocidentais, e serviu para denunciar as atrocidades do exército americano no Vietname. É comum considerar-se que a publicação dessa imagem acelerou o fim da guerra do Vietname".
Força da fotografia que os editores resolvem por vezes assinalar através da escolha de uma foto continente do assunto em foco, rodeado por uma imensidão de repórteres fotográficos. A invasão do Haiti pelas tropas americanas aparece em primeira página com a imagem de um desembarque de helicóptero, e vários soldados posando para a foto, e os fotógrafos incluídos na foto também!
Força que se pressente ainda quando os fotógrafos se afadigam em trazer à ribalta novos personagens, novos protagonistas. Foi graças à fotografia que o gato Socks passou a existir para milhões de leitores em todo o mundo...
Urge perguntar: pode a fotografia dispensar as palavras? Valem por mil, como manda o ditado? Entre fotografia e texto escrito, discutiremos relações de exclusão, ou de coabitação? Optamos pelos frutos da convivência entre estes dois modos de expressão e transmissão do "real" aos leitores das páginas dos jornais.Complementaridade, em vez de exclusão.
Podemos desde logo notar que a introdução da fotografia alterou de forma significativa a porta de entrada para a leitura dos artigos nos jornais. Sem foto, o artigo é sinalizado, identificado pelo título. A este compete funcionar como chamariz, como montra da mancha tipográfica de caracteres. A fotografia veio concorrer com o título, integrando também o conjunto de elementos paratextuais que acompanham/emolduram o texto escrito.Uma fotografia "forte", bem conseguida, funciona como uma chamariz mais eficaz à leitura do que o próprio título.
A força da foto obriga a menos texto escrito na área paratextual dos títulos e manchetes. Menos texto escrito, para dar lugar a fotos maiores, e menor número de caracteres para a mesma área impressa, dada a necessidade sentida de "engordar" as letras titulares.
A fotografia como porta de entrada do texto escrito, também pelo facto da sua legibilidade consumir menos tempo ao receptor. A leitura da foto ou do desenho é imediata, a do texto escrito não.
A fotografia vale também como testemunho de quem "esteve lá", parece trazer-nos o que aconteceu realmente. Na escrita, na reportagem do acontecido, parece sentir-se a presença do mediador-jornalista. Sentimos que é alguém que nos está a contar algo, e pode nem ter sido bem assim. Já a fotografia parece fazer esquecer quem a captou, relega para o anonimato o seu autor. O trabalho de mediação do jornalista sente-se nos caracteres que produz; o trabalho de mediação do fotojornalista apaga-se perante a evidência do acontecimento que "está" na foto.
Diremos então que a fotografia marca pontos na sua relação com a escrita.Se aquela é tão forte assim, qual a necessidade de um texto escrito a acompanhá-la? Para quê socorrermo-nos de legendas? Cumprirão estas a função de polícias do vigor da foto, a mando da escrita? "Uma boa foto não precisa de legenda" é opinião que devamos erigir a regra? Paul Almasy considera a afirmação gratuita, e damos-lhe razão. A foto de uma criança negra, fome pressentida nas costelas mal escondidas pela pele, parece sugerir-nos a todos o mesmo significado: uma criança faminta, em África; uma criança a juntar aos milhões que morrem todos os anos naquele continente sacrificado. A legenda pode alterar por completo o significado-padrão de tal foto. Por exemplo: "Um dos muitos milhares de crianças salvas graças à acção dos Médicos Sem Fronteiras". Por exemplo: "200 toneladas de víveres e medicamentos chegaram ontem à Somália para ajudar a minorar o sofrimento das crianças daquele país". A criança faminta, condenada à morte, passou a ter futuro graças ao texto escrito que a enquadrou.
É função das legendas conterem informação fundamental à legibilidade das fotos - a informação que conta e que é precisa para se compreender e justificar a inclusão das fotografias nos artigos em causa. Informação justificada porque necessária. Informação que canaliza a leitura da foto para o sentido que verdadeiramente lhe quiseram dar ao incluí-la no artigo jornalístico.Um sentido, um significado que o leitor até aí não conhecia, e que vai permitir uma leitura nova, reenvios da legenda para a imagem que ancora. A fotografia nas páginas impressas não se pode separar do texto escrito, foi ali colocada para funcionar em conjunção com o texto escrito, e não para competir com este. A fotografia terá os sentidos que a narração lhe pretenda dar, com a ajuda subjectiva do leitor.
A arrumação de determinadas fotografias, ocupando o espaço central da página, alcandora-as ao estatuto de referentes primeiros desse texto jornalístico. A fotografia está ali omnipresente, potente na sua imutabilidade, acolhedora nos reenvios dos olhares do leitor enquanto vai consumindo as linhas do texto jornalístico. O estatuto de referente primeiro do texto jornalístico que à foto concedemos, a fonte onde a escrita vai beber sentido, patenteia-se bem na experiência que desenvolvemos anteriormente, e referente ao artigo "O final da guerra e o pós-guerra", publicado no jornal "Diário de Notícias". Cumprida tal experiência, perguntar-se-á: a foto ilustra o texto, ou condiciona fortemente a leitura desse mesmo texto? Ilustra, e ao ilustrar condiciona a leitura do texto. Nalguns casos, a ilustração sobrepor-se-á ao condicionamento. Noutros, desencadeará o inverso.
A legenda de uma fotografia de imprensa pode arbitrar-lhe o sentido da mensagem política, social; pode dar à fotografia a sua dimensão dramática, como acontece no fait divers. A mensagem escrita pode aparecer em posição de força para impor um determinado sentido à fotografia. Mas também pode acrescentar algo à imagem, algo que a imagem "não diga", ajuntar-lhe uma voz, um ruído, um comentário exteriores ao signo icónico.
Em suma, o texto estabelece com a imagem uma relação que joga com o significante da língua, sobre a dimensão poética da linguagem e sobre as suas conotações, sobre as figuras de retórica clássicas. Acompanhamos assim Fresnault-Deruelle quando este afirma que "a imagem pode ser legitimamente considerada como um texto no sentido forte do termo, na medida em que os seus constituintes ( e a sua distribuição no espaço da representação), vão solicitar da parte do leitor uma série de ajustamentos, pelo que podemos dizer que eles se identificam ao que chamamos precisamente de leitura". Temos então dois textos para serem lidos em conjunção, cada um cumprindo a sua função específica, porque cada um dos textos carece do outro para se potenciar.