Fotoradiografias XI

Imagem da Prosa

Bernardo Pinto de Almeida*

À força de se multiplicar, a fotografia constitui a nova prosa do mundo. O seu olhar horizontal sobre as coisas tornou-se no mapa que quase cobre o território. Não nos é mais possível imaginar o mundo sem fotografias. Mas são também elas o que nos impede de imaginar o mundo.

Dantes, diz-se, o mundo parecia e era vasto nos seus horizontes e fronteiras, impenetrável nos seus múltiplos mistérios, cheio de incontáveis recantos. Assim se imaginava.

Uma viagem assumia a proporção de uma odisseia e prepará-la exigia cuidados demorados e atenção redobrada. Os estojos portáteis de toilette eram verdadeiras maravilhas de inteligência e de bom gosto e os seus frascos prodígios de elegância. As escrivaninhas, portáteis também, eram como cofres cujos tesouros se contavam em penas de escrever, tinteiros e resmas de um papel macio e aromático que esperavam a delicadeza nervosa ou a firmeza elegante das caligrafias. As tampas, em madeiras raras e embutidas, revestiam-se com pele muito fina para que a escrita fluisse límpida e nítida quando sobre ela repousava o papel. Os baús e as malas eram grandes e espaçosos para que neles se pudesse guardar tudo o que poderia vir a ser necessário. Pareciam caixas mágicas ou esconderijos onde qualquer um se poderia ocultar. Nunca acabavam de sair dos seus ventres generosos as surpresas e as prendas quando alguém voltava. Cheiravam a linho fresco e a flores secas. Diz-se que Casanova escapou furtivamente de Veneza escondido num desses baús descido à noite por uns quantos homens, seus criados, para uma gôndola. E que dali o levaram para o seu exílio onde escreveu as memórias.

O correio levava muito tempo e as cartas e postais, cobertas com uma caligrafia demorada em tinta cor de sépia, faziam relatos minuciosos de estados do corpo e do espírito que se combinavam com descrições de monumentos, projectos por concluir, protestos de sentimentos grandes e graves, lágrimas comovidas e saudades distribuídas por palavras e nomes escritos com aquela emoção que só a distância física pode suscitar.

Os viajantes eram raros e recebidos avidamente por todos, na expectativa das suas notícias e das suas histórias. Demoravam a chegar. As suas partidas e chegadas eram anunciadas pelos jornais em colunas especiais, ao lado dos movimentos portuários. Davam-lhes o merecido destaque que se reservava em tempos às partidas dos aristocratas para a província. Os livros de viagens, sem imagens, despertavam a emoção em adultos e crianças que depois sonhavam com paragens que nunca haviam visto.

Douanier Rousseau, que nunca viajou além das fronteiras aduaneiras de Paris, pintou essas paisagens com a imaginação a ferver como o azeite da consoada. E Raymond Roussel, no seu iate, imaginou a África tão intensamente que nunca teve que ir a terra. Assim a descreveu, impressionante, em Impressões e Novas Impressões. Como Kafka fez com a América. Nunca a esqueceu, porque a imaginação não se esquece. Volta de noite, como os sonhos, e assalta a insónia tomando conta dela.

A fotografia, muito mais do que o avião, acho eu, encurtou o mundo. Do bilhete postal ao prospecto de viagens, da revista à imagem por satélite, da tele-foto à radiografia, a imagem concorreu para tornar tudo mais familiar, mais próximo, mais objectivo. E mais ausente. A fotografia virtualizou o mundo.

À subjectividade do viajante sucedeu a objectividade do turista. A sua bagagem é, geralmente, reduzida. Já sabe de antemão o clima que vai encontrar. Os hotéis fazem o resto. São, por toda a parte, iguais. À picaresca descrição do outro deu lugar a incansável reiteração do mesmo (Virilio).

A fotografia é testemunho de um ter estado que substitui senão o próprio estar pelo menos a experiência que conferia a esse estar o sabor de uma aventura. Para que serve então? Precisamente para atestar que o mundo existe como um espaço limitado. Que se conhece até ao ínfimo, até ao íntimo. Até do mais interior do nosso corpo possuímos já imagens. Como da mais pequena planta, insecto ou formação mineral. Das selvas e savanas, das altas montanhas coroadas pelas neves eternas onde muito poucos chegam e dos mais longínquos países onde os hábitos diferem nos rituais, no vestuário e na alimentação. Dos remotos povos que ainda vivem tribalmente e da sempre misteriosa superfície da lua, com as suas crateras e o homem que parece que lá vive em noites de lua cheia. Como das catástrofes sejam elas naturais ou premeditadas. As fotografias cumprem, metodicamente, a sua missão de reduzir o mundo à espessura intersticial da imagem. De serem écrans do mundo. De exorcizar toda a intimidade. De prescrutar até ao imprescrutável .

Uma fotografia porém pode, de vez em quando, salvar-nos desse deserto eufórico da imagem. Através dela, às vezes, regressa a esperança de uma profundidade antiquíssima do mundo. Acorda para a rêverie, desperta em nós essa corda antiga cuja vibração se chama imaginar.

Então a fotografia deixa, por um breve instante, de ser prosa para ser um lugar onde silenciosamente se insinua e se aloja a poesia.

* In "Imagem da FotografiaÓ"(referência detalhada em "LeiturasÓ"

FOTORADIOGRAFIAS XII