"Eu não tomo partido, tiro fotos"

Dinis Manuel Alves*

O cinema, que se alimenta de fotografias, que é - existe - enquanto sucessão cadenciada de fotografias - o cinema também se alimenta da fotografia enquanto tema. O cinema lembra-se às vezes do fotojornalista, herói dos tempos modernos, intruso nos palcos onde outros são actores. Fotojornalista que não deve, não pode tomar partido, mas que às vezes toma: aconteceu em "Debaixo de Fogo": Nick Nolte fotografou o líder guerrilheiro Rafael, já morto, a pedido dos sandinistas, que precisavam de Rafael vivo, ao menos numa foto (1). Nick Nolte quebrou a divisa tantas vezes por si anunciada no próprio filme: "eu não tomo partido, tiro fotos". Para além da foto-embuste de um líder guerrilheiro morto-vivo, Nolte teve a desdita de fotografar o fuzilamento de um seu camarada de profissão, por parte das tropas fiéis a Somoza. Este atribuiu a autoria da morte do jornalista aos sandinistas. Só que a foto tirada por Nolte chegou aos Estados Unidos, obrigando a uma reviravolta do governo dos EUA no apoio que prestava ao regime somozista: "Foi preciso morrer um jornalista americano para os EUA reagirem. Se calhar, já devíamos ter morto um jornalista americano há cinquenta anos atrás. O povo teria sofrido menos!" - desabafava uma guerrilheira nicaraguense. Foi preciso morrer um jornalista americano, e foi preciso, importa não esquecer, que tal morte tivesse sido registada em película fotográfica... Em suma, um filme que não fez cartaz, mas que alberga um manancial precioso de interrogações, no capítulo da pretensa e tão endeusada objectividade jornalística.

Em "Salvador" dois repórteres fotográficos deambulam pelo teatro da guerra na América Latina. Logo na primeira frincha aberta pelo filme, John Savage lembra Robert Capa, lembra que é preciso aproximarmo-nos para captarmos o momento da morte (2). Se nos aproximamos demais, morremos. Savage morreu no filme. As suas últimas palavras não as dedicou à família, ou ao arrependimento de qualquer pecadilho: lembrou a James Woods que deveria levar o rolo de fotografias para Nova Iorque.

Os filmes que tratam da fotografia para a imprensa revelam-nos uma estranha encruzilhada entre o fotojornalista e a morte: encontro marcado entre ambos, bastas vezes, vezes demais. As fotos podem matar, mesmo fora do teatro de guerra. Aconteceu na vida real, Bob Fosse levou à tela o drama da playmate assassinada às mãos do marido ciumento. Falamos de "Star 80, a Tragédia", tema tratado também no filme "Assassinato nas Páginas Centrais".

Em "Blow Up, a História de um Fotógrafo", mais um encontro marcado com a morte: aqui é Thomas, jovem fotógrafo do universo da moda, que descobre um assassínio num parque de Londres. Descoberta acidental, não na tomada das fotos, mas mais tarde, quando as amplia. A morte fotografada alimenta a trama deste filme-culto do mestre italiano.

Um homicídio - 3 dólares

A morte em fotografia dá dinheiro e fama. Na caderneta de trabalhos efectuados pelo Grande Bernzini(3), ao lado da chancela "Os Olhos do Povo", o fotógrafo apontou: "Um homicídio - 3 dólares". Bernzini que queria os mortos com chapéu, "porque as pessoas gostam de ver o chapéu do morto". Ficaremos sem saber se Bernzini era dos que picava bébés abandonados, porque as fotos de bébés a chorar valiam mais um dólar.

A morte em fotografia dá dinheiro e fama. E se forem apenas uns braços decepados? Dá jeito na mesma, pelo menos para Glenn Close, no filme "Primeira Página". Os negros injustamente acusados de um homicídio só ganhariam a manchete "Caçados" se houvesse fotos. Houve foto, felizmente que para o título "Não mataram". A fotografia a ganhar neste filme estatuto primacial. Por vezes interessa até, para a estratégia de um editor, que o fotojornalista tenha azar e não consiga capturar o alvo - a fotografia passa a ter valor se não existir, valha-nos o paradoxo. Foi essa a sugestão meio envergonhada que Michael Keaton fez à estagiária do jornal e que esta - azar de Keaton - , não cumpriu por um capricho da sorte. (4)

A propósito de "Caçador de Escândalos", que narra a vida de um "paparazzi", Lauro António refere-se aos jornais que vivem de escândalos, escândalos que carecem de fotos: "Alguns jornais vivem, sobrevivem, enriquecem, com base no escândalo. No escândalo que descobrem, como do escândalo que encobrem. Porque ambas as regras são autênticas para os mesmos visados. Ou seja: lucrar tanto se lucra publicando a descoberta (porque o público compra), como encobrindo-a (porque o interessado paga)". (5)

Assim é como o céu. Estão mortos para ver como é cá dentro!

Em "Repórter Indiscreto", Bárbara Herschey revela a Bernzini nunca terem tirado fotos dentro do seu cabaré: "Assim é como o céu. Estão mortos para ver como é cá dentro!" O céu que pode habitar um obscuro apartamento de um obscuro bairro nova-iorquino, ancoradouro de uma "Janela Indiscreta" que Hitchcock abriu em celulóide. Mesmo de perna engessada, o fotojornalista James Stewart não despegou do vício de olhar o mundo por interposta objectiva. Uma vez mais, a morte perseguindo o fotojornalista. O filme alimenta-se do que a objectiva de Stewart não conseguiu testemunhar, apenas pressentiu: o assassínio de uma vizinha por parte do marido. E, como a meada não desse andamento à descoberta do fio, Grace Kelly lamentava-se para o namorado, ali obrigado ao fotojornalismo de cadeira: "Não sei muito sobre moral de janelas indiscretas, mas achas que ficaríamos satisfeitos se a mulher estivesse viva?" Frase cruel, é verdade, mas que se desenganem os que a enquadram apenas no universo da ficção fílmica: na vida real do fotojornalista quantos lamentos do género não se fazem, no dia a dia? Os leitores gostavam de ver o morto com chapéu, mas para "gozar" tal boneco é preciso que haja morto, nem que para tal seja necessário um empurrão do jornalista: "- Gostou do plano da queda? O tipo cai vinte andares bem focado e passo devagar de F16 para F5. - Bela filmagem, Chucky. Diz ao Frazer que abrimos com isto. Aposto que ela o empurrou só para o filmar". (Diálogo do filme "Herói Acidental")

Enfim, por pouco que se ganhe, por muito que se morra, o fotojornalismo é um vício, o cinema disso nos dá conta de quando em vez, um vício que não se larga porque, como bem sinalizava Bernzini: " Sou como o que limpa a merda do elefante e disse ao dono do circo: Julga que eu deixava a vida artística?!" (Joe Pesci, em "Repórter Indiscreto")

N O T A S

1. Aquando do anúncio da morte de Che Guevara, em Cuba e também pelo resto do mundo, os simpatizantes do guerrilheiro chegaram a acreditar que tal notícia se tratava de um embuste. Crença firmada pela divulgação de fotos que se julgava retratarem Guevara: efectivamente assim não aconteceu, com Fidel Castro, dias mais tarde, confirmando a desdita - as fotos do guerrilheiro Ramón não eram as de Che Guevara.

2. "John Savage - Sabes o que fez a fama de fotógrafos como Robert Capa? Não era dinheiro que procuravam. Procuravam capturar a nobreza do sofrimento humano. James Woods - Grande fotografia aquela de Espanha! O corpo no ar. JS - Era mais do que um corpo. Ele percebeu porque razão eles morriam. Foi isso que o Capa captou. O momento da morte. JW - E tu és igual a ele, John. És o melhor. JS - É preciso aproximarmo-nos para captarmos a verdade. E se nos aproximamos demais, morremos". Este diálogo entre Savage e Woods tem por cenário um campo empilhado de cadáveres, nos quais os fotojornalistas não tropeçam a custo. Quando Savage se refere "ao momento da morte", o realizador Oliver Stone oferece-nos a foto de um abutre. Este animal faz parte dos clichés fílmicos, sinalizando a morte concretizada, ou prenunciada. E integra ainda a fauna dos clichés fotojornalísticos. Se o repórter fotográfico anda de mãos dadas com a morte, é natural que traga o abutre por companhia. Kevin Carter, jornalista sul-africano, conquistou o Prémio Pulitzer de 1994 com a foto de uma criança sudanesa com morte anunciada, e o "inevitável" abutre por perto. Inevitável? Há quem julgue que não, censurando bastante a presença do animal na foto premiada, ou a concessão do prémio a uma foto continente de um abutre. Na edição de Setembro de 1994 do jornal "Le Monde Diplomatique", Edgar Rouskis considera ter sido o abutre e não a criança sudanesa a "conquistarem" o prémio, "e isto é lamentavelmente malsão". Em nota de rodapé pouco inocente, aquele crítico dos media recorda ter o jornalista sido encontrado morto em Julho de 1994, dentro da sua viatura, asfixiado por monóxido de carbono, tudo levando a crer ter-se tratado de suicídio.

3. No filme "Repórter Indiscreto", o personagem Bernzini, interpretado por Joe Pesci, baseia-se na vida do fotógrafo americano Weegee (Arthur Fellig).

4. Colocando este filme questões de grande pertinência no campo do jornalismo, é curioso verificar a sinopse da edição portuguesa de vídeo. Ali, o enfoque vai quase todo para os dramas pessoais dos protagonistas, secundarizando as questões fulcrais da película para um reduzidíssimo rodapé: "Por vezes basta um simples dia para mudar toda a nossa existência. Hoje, Henry Hackett (MICHAEL KEATON) o editor de um jornal de Nova York, vai ter importantes decisões para serem tomadas. A sua gravidíssima mulher, (MARISA TOMEI) está igualmente prestes a tomar importantes decisões. A chefe de Henry (GLENN CLOSE) está também perante uma crise existencial e o seu superior (ROBERT DUVALL) descobriu que está gravemente doente. A acelerar esta atmosfera o jornal tem em mãos uma escaldante história que poderá expor um escândalo ao declarar inocentes dois jovens acusados de homicídio".

5. ANTÓNIO, Lauro. "Cinema e Comunicação Social", edição do Festival Internacional de Cinema de Portalegre, 1990.

Ficha técnica dos filmes referidos no texto

Debaixo de Fogo (Under Fire) USA (1983), Cor, 128 min. Realizador: Roger Spottiswoode. Actores: Nick Nolte, Gene Hackman, Joanna Cassidy, Ed Harris, Jean-Louis Trintignant. Edição vídeo para Portugal: Publivídeo

Primeira Página (The Paper) USA (1994), Cor, 85m. Realizador: Ron Howard. Actores: Michael Keaton, Robert Duvall, Glenn Close, Marisa Tomei, Randy Quaid, Jason Robards. Edição vídeo para Portugal: Edivídeo

Janela Indiscreta (Rear Window) USA (1954), Cor, 112 min. Realizador: Alfred Hitchcock. Actores: James Stewart , Grace Kelly, Wendell Corey, Thelma Ritter, Raymond Burr. Edição vídeo para Portugal: Edivídeo

Salvador USA (1986), Cor, 123 min. Realizador: Oliver Stone. Actores: James Woods, James Belushi, Michael Murphy, John Savage. Edição vídeo para Portugal: Videosif

Repórter Indiscreto (The Public Eye) USA (1992), Cor, 99 min. Realizador: Howard Franklin. Actores: Joe Pesci, Barbara Hershey, Stanley Tucci, Jerry Adler

Star 80, a Tragédia - USA (1983), Cor, 102 min. Realizador: Bob Fosse. Actores: Mariel Hemingway, Eric Roberts, Cliff Robertson, Carroll Baker. Edição vídeo para Portugal: Warner Home Video/Kodak

Outros filmes que sugerimos

Blow up, A história de um fotógrafo - Itália- Reino Unido (1966), Cor, 111 min. Realizador: Michelangelo Antonioni. Actores: Vanessa Redgrave, David Hemmings, Sarah Miles, Jill Kennington, Verushka, Peter Bowles, Jane Birkin, Gillian Hills. Edição vídeo para Portugal: Legal Vídeo

Os Olhos de Laura Mars (Eyes of Laura Mars) US (1978), Cor, 103 min. Realizador: Irvin Kershner. Actores: Faye Dunaway, Tommy Lee Jones, Brad Dourif, René Aberjonois, Raul Julia. Edição vídeo para Portugal: Publivídeo

Assassinato nas páginas centrais (Death of a centerfold - Dorothy Stratten) USA (1981), Cor, 92m. Realizador: Gabrielle Beaumont. Actores: Jamie Lee Curtis, Bruce Weitz, Mitchell Ryan. Edição vídeo para Portugal: Legal Vídeo

Fontes

1. CD-ROM

O CD-ROM Cinemania fornece-nos informação abundante sobre os filmes elencados neste trabalho. À informação básica - que compreende o país de origem do filme, data de produção, duração, realizador, actores e casting -, acrescentam-se outros dados, como os óscares conquistados, as nomeações, fotografias e nalguns casos pequenos excertos do filme. De grande utilidade o sumário do filme, e as críticas com um painel de três conceituados críticos de cinema.

O livro "Cinema e Comunicação Social", da autoria de Lauro António, edição do "Festival Internacional de Cinema de Portalegre", sem data, inclui textos daquele crítico cinematográfico sobre alguns filmes relacionados com o fotojornalismo. Este livro encontra-se disponível na Biblioteca do Instituto de Estudos Jornalísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

*Produção de Dinis Manuel Alves para a disciplina "Teoria e História da Imagem", da Licenciatura em Jornalismo da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Disciplina regida pelo Dr.José Carlos Abrantes.

O fotograma do cabeçalho pertence ao filme "Debaixo de Fogo"

FOTOMOVIES II