Um estatuto singular |
QUAL A FUNÇÃO SOCIAL DA FOTOGRAFIA E A QUE CRITÉRIOS DEVERÁ OBEDECER?
J.M. Nobre Correia* Expresso 13/09/1997
OS DEBATES sobre a natureza de um texto são, provavelmente, velhos como a história da escrita. Estilo requintado ou pouco elegante. Rico de informação ou particularmente vazio. Inteligente ou desprovido de interesse. Fruto de uma investigação séria ou de pura iniciativa promocional. Forjado com honestidade ou claramente tendencioso. E tudo o mais capaz de dar azo às argumentações mais contraditórias. O texto é, por princípio, criticável. A fotografia, por seu lado, usufrui de um estatuto mais complacente. Discutir-se-á dos aspectos estéticos e mais raramente das características técnicas. E pouco mais. Pouco se dirá, em todo o caso, sobre a qualidade informativa da fotografia. Sobre o mundo real, a pose assumida ou a subjectividade do olhar. Sobre a sua actualidade ou historicidade. E ainda muito menos sobre as condições em que foi obtida. Porém, uma parte significativa das fotografias publicadas pela imprensa tem por origem as pessoas que nelas figuram. Ou, o que é mais provável, os gabinetes de relações públicas destas pessoas. E quando as fotografias provêm de um fotógrafo (independente, de agência ou ligado a um «media») resultam, em boa parte dos casos, de atitudes previamente decididas pelo sujeito fotografado. Para não falar já das numerosas personalidades que só aceitam ser fotografadas na condição de serem elas próprias a escolher os «clichés» que serão enviados aos «media». A propósito do falecimento de Diana Spencer, «Le Monde» lembrava que «os grandes deste mundo» passaram a controlar a imagem pública e privada que os «media» dão deles. No caso extremo dos Estados Unidos, passou a ser praticamente impossível fotografar um membro da família do Presidente fora das regras estabelecidas pela Casa Branca. É ela quem decide do momento, do sujeito, do local e até do ângulo em que deve ser tirada a fotografia. Os fotógrafos perderam toda e qualquer margem de manobra. E, no que diz respeito às fotografias de carácter mais pessoal, só o fotógrafo oficial do Presidente é autorizado a fazê-las. É este estado de coisas que leva muitos «paparazzi»- honesta ou cinicamente, segundo os casos- a considerar que só o roubo de imagens permite ainda propor aos cidadãos uma visão do mundo real. Ou, pelo menos, propor uma visão da realidade quotidiana dos «grandes deste mundo» que escape à versão oficial que estes procuram impor. Que escape aos critérios de comunicação promocional do sujeito e que corresponda aos critérios de informação a que o público tem direito. Embora o grande público e boa parte dos editores de jornais não se apercebam, a questão do valor informativo de uma fotografia põe-se cada vez com mais acuidade. Da mesma maneira que a questão da natureza privada da situação ilustrada põe a dos princípios deontológicos a observar. O que não deixará de nos interpelar sobre a função da fotografia nos «media». E sobre a responsabilidade do fotógrafo, da agência e do «media» na escolha das fotografias propostas ao público. |
* Texto publicado na rubrica "Mediapolis".
Jornal "Expresso" (Portugal)