Todos são culpados

Gilles Lapouge*           O Estado de S. Paulo 01/09/1997

PARIS - Os franceses - como de resto o mundo todo - estão horrorizados com os paparazzi, cuja avidez levou à morte ontem a princesa Diana. Desde as 5 horas de ontem, uma hora depois do anúncio do falecimento, as rádios transmitiam apenas os comentários indignados das pessoas nas ruas. A princesa Diana da Inglaterra e seu namorado, o milionário egípcio Emad Mohamed Dodi al-Fayed, morreram de madrugada num acidente de carro em Paris, ao tentarem fugir de um grupo de fotógrafos que, de motocicleta, perseguia o casal num túnel. O Mercedes em que iam Diana e Dodi bateu num pilar e a frente do carro esmagou os ocupantes. Dodi e o motorista morreram imediatamente. Diana viveu mais algumas horas. O outro ocupante, um guarda-costas da princesa, sobreviveu.

Mas quem são essas pessoas que se levantaram tão cedo, ainda de madrugada, e povoavam os arredores do túnel da Ponte d'Alma, sob o Rio Sena, o túnel em que a mulher mais fotografada do mundo encontrara a morte, um túnel que ainda cheirava a sangue? Pois elas são os "fãs", os admiradores de Diana - ou seja, exatamente as pessoas que compram os tais tablóides, jornaizinhos sensacionalistas aos quais os paparazzi vendem, a peso de ouro, as fotos indecentes que conseguem tirar. Assim, o que vimos era um espetáculo contraditório: os consumidores dessas fotos - fanáticos sem os quais os paparazzi não existiriam - foram os primeiros a vir para a beira do túnel, para declararem alto e bom som o seu ódio aos paparazzi.

Hospital - Mudança de cenário. Estamos agora no Hospital de la Pitié Salpêtriere, onde repousava o corpo da bela princesa. E se olhássemos para os prédios que rodeiam o hospital, enquanto todas as rádios atacavam os paparazzi, o que veríamos? Em quase todas as janelas, câmeras fotográficas poderosíssimas, com canos longos como de bazucas, que os paparazzi ali instalaram na esperança de que o cadáver passasse ao alcance das suas objetivas. As janelas foram sem dúvida alugadas por quantidades fabulosas, na madrugada desse dia triste, pelos moradores dos apartamentos. O que nos faz lembrar o que se passava em Paris, outrora, na Place de Greve (hoje Place de l' Hotel de Ville, a prefeitura). Era nessa praça que os carrascos executavam os condenados à morte (a machado, no tempo dos reis, na guilhotina, a partir de 1791). As execuções eram públicas - e marcadas por uma característica ainda mais ignóbil: as pessoas que tinham a sorte de morar em torno da praça ficavam ricas, pois os aristocratas pagavam fortunas para desfrutar, de uma dessas janelas, a visão das cabeças dos guilhotinados caindo dentro dos cestos. Casanova, nas suas Memórias, nos fala dessas janelas. E conta que cada execução era pretexto para uma festa em uma dessas casas reunindo "a "melhor sociedade do Reino". Casanova, incansável consumidor de mulheres, não perdia essas festas. E no livro, observa que as beldades mais castas, mais devotas, praticamente se derretiam quando assistiam a esses horrores. Não se trata, aqui, de tentar desculpar os paparazzi, invenção sinistra, moscas do inferno que se alimentam de dejetos, que voam aos bandos para qualquer lugar de onde emane um odor de podridão, verdadeiros urubus do mundo moderno. Mas, se nos contentarmos em amaldiçoar essas lamentáveis personagens, esses adoradores de cadáveres, estaremos evitando olhar cara a cara o câncer que corrói toda a sociedade. Os tais "fotógrafos" são apenas "profissionais" ávidos e estúpidos, cínicos, que não hesitam em engordar à custa do sangue dos outros.

Não existiriam, porém, se as fotos que produzem não fossem cobiçadas e compradas pelo mundo inteiro. Assim, na longa e sombria cadeia dos que conspiraram para a morte de Diana, os fotógrafos são apenas a parte mais visível e absurda. Em torno deles, por trás deles, existem forças mais bem protegidas - e bem mais hipócritas. Primeiro, os jornais. Fala--se muito na "imprensa marron" dos ingleses (o Sun, o Mirror, etc.), que, a cada domingo, despeja mentira e podridão sobre todo o Reino da Grã-Bretanha. Mas os tablóides não são uma exclusividade britânica. A França - que tem o duvidoso privilégio de acolher, nas belas margens da sua Costa Sul, entre Cannes e Nice, as pessoas mais ricas e famosas do planeta - não está nada longe da Inglaterra em termos de baixeza. Os jornais franceses que se alimentam desses segredos de alcova tiram, a cada semana, 3 milhões de exemplares. Ou seja: esses jornais são lidos regularmente por 20 milhões de leitores - um francês em cada três.

Jornais de resto excelentes procuram também satisfazer essa curiosidade. Gala, jornal semanal do grupo Ganz (que publica também revistas excelentes, como Geo), coleciona processos. E, quanto mais processos, mais a sua tiragem aumenta. Mesmo Paris-Match, revista que já teve seu prestígio, vem se especializando, há alguns anos, nas famílias reais britânica, monegasca, dinamarquesa ou holandesa - e isso sem falar nos velhos reis decaídos, cobertos de poeira e condecorações, que continuam a inspirar romances, como o rei Zog, da Albânia, o rei Miguel, da Romênia. E o Figaro Madame atrai as leitoras contando os amores, os casos ou como se vestem suas altezas reais.

Então? Bastará arrastar para o banco da infâmia os jornais "de escândalos"? Sem dúvida - mas por que será que esses jornais são tão ricos? Porque respondem a uma expectativa do público. Os seres humanos - especialmente as mulheres, ao que parece - condenados a vidas mornas, sem graça e sem dinheiro, sem amores e sem surpresas, têm necessidade de sonhar. E identificam-se com tudo o que brilha, com os "outros" humanos que levam, segundo eles, vidas de contos de fadas: altezas reais, manequins, atores, homens e mulheres da alta, bem vestidos, alheios à esfera do trabalho, da falta de dinheiro e das dificuldades - vidas que imaginam tão belas que chegam a duvidar que essas pessoas sejam mortais com elas, como nós, sujeitos às funções degradantes da fisiologia.

Assim, acima dos paparazzi e da imprensa marron, temos um terceiro grupo de culpados: esses homens e mulheres que, na manhã de ontem, já antes das seis horas, choravam no túnel da Ponte d'Alma, a morte do seu ídolo ensanguentado, amaldiçoando, de passagem, a indiscrição dos paparazzi.

Será isso tudo? Ainda não. A principal agência francesa de paparazzi chama-se, apropriadamente, Boomerang. E, se são ladrões, são ladrões com um objetivo. O bumerangue é um símbolo forte: lança-se a arma para o alto e, essa arma, depois de descrever algumas belas curvas no céu, volta, e atinge quem a atirou.

Podemos compreender a forma de pensar (e de se desculpar, ao mesmo tempo) dessa agência: "Somos desprezados e atacados, todo o tempo, pelas celebridades, pelos atores, porque violamos a sua intimidade - mas esses artistas ilustres, essas modelos maravilhosas, o que seriam se, no início das suas carreiras, não tivessem sido fotografados nas areias de Cannes, nas mansões de Malibu, na boates de Londres? Foram os paparazzi que as tornaram famosas - e agora que elas o são, processam os jornais, dizem-se vítimas, perseguidas. E nem se lembram de dizer que, no começo de suas carreiras, eram elas que nos chamavam e faziam de tudo para sair numa foto."

Essa análise não é falsa, ainda que em nada diga respeito à princesa que acaba de morrer. Quando se é princesa de Gales não se tem necessidade de paparazzi para se tornar conhecida. Ainda assim: o nome bumerangue é uma excelente escolha para descrever esta nossa sociedade podre, indigna, decadente, em que todos são medíocres e cúmplices, e sobre a qual voam, sem um instante de paz, armas cujo maior prazer é ferir precisamente quem as lançou.

Não pretendemos, aqui, diminuir a responsabilidade dos paparazzi. O que queremos dizer é que, se fizermos uma análise séria, descobriremos nesse caso, para além dos fotógrafos, dos jornais, das pessoas ilustres, um culpado maior: a sociedade contemporânea, que se compraz na futilidade, na vulgaridade e nas aparências.

Todos culpados!

 * Texto publicado pelo jornal brasileiro O Estado de S. Paulo

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