No país da talidomida inexistente

Óscar Mascarenhas*           Diário de Notícias 03/09/1997

No domingo, estava aquela gente toda diante do Palácio de Buckingham: apoiados na vedação metálica ou sentados no lancil do passeio, lá se mantinham silenciosos, abatidos por uma tristeza sincera. Um, mais nervoso, ergueu a voz. Insultou os repórteres fotográficos e operadores de imagem. Os outros, em volta, saíram da prostração, foram apossados pela usual coragem de matilha e ulularam de ódio. Do lado de cá do pequeno ecrã olhei-os bem: iria jurar que eram os mesmos, mesmíssimos, que eu vi em Londres há três para quatro semanas. Os mesmos: europeus, africanos ou asiáticos, mas todos british. Vi-os oito dias a fio nos comboios da Grande Londres, cada uma e cada um com o seu jornal, todos tablóides, todos abertos nas mesmas páginas e no mesmo tema. Devoravam fotografias difusas e imperceptíveis do Novo Namoro. (Alguns jornais, não tendo podido caçar com cão-paparazzo caçavam com gato-fotomontagem: pra quem é, basta Yorkshire pudding, que é uma empada de farinha com recheio de farinha.) Iam quase todos em silêncio, restolhando as páginas: viajavam sozinhos. Mães de família, quando acompanhadas por outras mães de família nesse regresso do trabalho, deslizavam o dedo pelas curvas das figuras, com risadas de excitação incontida e comentários de brejeirice sussurrada: estes sonhos com princesas têm de meter alguma alarvidade de bacanal medievo. . . !

Agora, esse pessoal está avinagrado. Ingratidão! Esquecem-se de que aqueles tablóides que lhes grudam o olhar no papel prestam um inestimável serviço à tranquilidade pública, ao establishment. (In)felizmente, já amanhã vão ter outra história de deleite e dengue para embalar passageiro de comboio londrino: é que se ele levanta os olhos, dá-se logo conta de que viaja em condições que ficam muito abaixo da linha de Sintra dos piores tempos e ligeiramente acima do vagão jota dos neo-realistas. E perceberá que, enquanto se enfronhava nos tablóides, alguém o recambiara para um capitalismo anterior ao da revolução industrial, para o trabalho incerto e precário, para o funeral dos sindicatos, para a educação e saúde em ruínas. E ainda se dará conta de que os caminhos de ferro britânicos estão ferrugentos e já nem britânicos são: talvez por saber fingir melhor do que outros é que puseram a grande actriz Glenda Jackson como ministra do Carril! Se eles levantassem os olhos...! Mas não, amanhã ainda não será a véspera desse dia. No estado a que chegaram as coisas, o pessoal só acorda quando um tablóide revelar, com fotos e parangonas, que Tony Blair é filho de um amor secreto entre John Major e Margaret Thatcher...

Rever as leis em defesa do que é privado? Mas há falta de leis dessas na Grã-Bretanha? Há-as e até de mais. E são aplicadas sempre que as alegadas vítimas o desejam. O que acontece é que elas só reagem quando há algo de material que seja posto em causa, dão pouco valor a questões não facturáveis como o direito à imagem ou à intimidade. É uma gestão de equilíbrios: os britânicos podem conhecer a cor da roupa interior da realeza, mas nunca tiveram direito a saber que a talidomida lhes mutilou horrivelmente os recém-nascidos. É que o laboratório que produzia a droga conseguiu uma ordem dos tribunais para impedir a notícia que lhes prejudicava o negócio. E das vacas loucas só souberam porque nenhuma empresa individual tinha o seu nome envolvido! O sistema está feito para que o homo britanicus continue a ser aquele que se desvia, indiferente, de um seu semelhante caído na rua - e devore avidamente o último segredo de alcova de uma brazonada tonta qualquer. Lei, ali, só aquela que os arrebatasse da vida curtinha, insossa e sem horizontes a que estão tão alegremente condenados. Nós, depois, copiá-la-íamos!...

 * Texto publicado pelo jornal Diário de Notícias

[REGRESSO AO ÍNDICE I DE ARTIGOS]