A princesa "vampirizada" pelos media |
Mário Mesquita* Diário de Notícias 01/09/1997
Seria ridículo transformar a morte de Diana, princesa de Gales, num "estudo de caso" de deontologia profissional, mas é inevitável que as circunstâncias em que perdeu a vida conduzam a uma enorme especulação acerca das questões relacionadas com o jornalismo e a forma como é praticado por toda uma indústria da sensação e do escândalo. Diana fazia parte do universo dos "olímpicos" - como lhes chamaram alguns sociólogos, nos anos sessenta -, a que pertencem príncipes e princesas, aristocratas e playboys, artistas e escritores célebres, estrelas do cinema e do teatro ou ídolos do desporto. A vida dessas personalidades, narrada pelos órgãos de comunicação social, alimenta o imaginário popular de forma a compensar as misérias do quotidiano. São as frágeis e pobres mitologias do nosso tempo, trabalhadas até à exaustão pelos media, que mal chegam para contrabalançar a crise das crenças religiosas tradicionais e das convicções ideológicas ou doutrinárias... A imagem dos "olímpicos" situa-se algures entre o real e o imaginário, entre as suas "vidas reais" e os sucessivos relatos, mais ou menos ficcionados, que delas fazem os meios de comunicação social. À sua volta, proliferam as indústrias, mais ou menos sórdidas, consoante os casos e os gostos, da imprensa "cor-de-rosa" e da imprensa sensacionalista. Existem legislações, costumes e práticas, que variam de país para país, em matéria de protecção da privacidade das figuras públicas. Mas, de um modo geral, o perfil dos "heróis" do nosso Olimpo é de tal maneira fabricado à custa da confusão entre o público e o privado que não lhes é fácil manter longe da curiosidade do "grande público" amores, traições, infidelidades e tantos outros episódios da esfera reservada... A biografia de Lady Di - até o diminutivo é uma fabricação mediática - começa pelo conto de fadas da ascensão de uma jovem à família real inglesa, que teve o apogeu, em 1981, no cerimonial do casamento real, difundido em directo para todo o mundo, numa das transmissões de maior audiência na história da televisão. A história de Diana, dita de Gales, não tardou a mudar de género: das pomposas cerimónias subordinadas ao protocolo da monarquia britânica passou para as notícias avulsas acerca das desavenças com o príncipe Carlos ou das recíprocas "traições". Da telecerimónia passou à telenovela. A Cinderela enamorada dos primeiros tempos cedia lugar, sucessiva ou simultaneamente, à mãe dedicada, à esposa traída ou à mulher infiel. O grande espectáculo transmitido pela BBC, tendo por cenário o Palácio de Buckingham ou a Catedral de São Paulo, dava lugar às fotografias obtidas furtivamente, às manchetes escandalosas e, por fim, às entrevistas-confissões sabiamente preparadas por conselheiros de comunicação. No retrato desenhado pelos media, convergiam as imagens contraditórias e complementares da jovem oprimida pelo conservadorismo da família real britânica, da vítima de um príncipe sem graça, da mulher instável e bulímica que procurava notoriedade e multiplicava relações amorosas da princesa solitária e abandonada que lutava contra os preconceitos de uma aristocracia caduca. A guerra entre os porta-vozes da monarquia britânica e as "fontes" próximas de Diana - através de declarações assumidas ou de "fugas de informação" anónimas - assumiu elevadas proporções de autêntica ferocidade. Diana empenhou-se também em grandes campanhas de caridade, amplamente mediatizadas - contra a sida, o cancro, as minas antipessoais, ou de apoio aos leprosos e às crianças desprotegidas. Este conjunto de acções, apoiadas por organizações oficiais e privadas, permitia-lhe acentuar determinados traços do seu carácter e conquistar um estatuto próprio num mundo cada vez mais concebido como um grande e único palco. O relacionamento entre a Casa Real britânica, a princesa Diana e os media - em especial a imprensa sensacionalista britânica - traduziu-se num debate sem fim acerca da protecção da vida privada das figuras públicas. Diana acusava a imprensa - em especial os fotógrafos e os operadores de câmara - de lhe tornarem a vida impossível. Os directores dos "tablóides" respondiam-lhe certamente com palavras menos cruas do que estas - que, afinal, tudo o que Lady Di era, enquanto personalidade pública, se devia à comunicação social, responsável pela construção da imagem que fizera dela um ídolo dos britânicos. As pressões da Casa Real, dos meios políticos e de sectores influentes da opinião pública traduziram-se na criação, no início dos anos 90, de uma Comissão de Queixas contra a Imprensa (Press Complaints Comission). Sob a ameaça da eventual adopção de legislação repressiva, contrária às tradições britânicas em matéria de liberdade de expressão, os directores e chefes de redacção da imprensa sensacionalista aceitaram associar-se à iniciativa. O Código de Prática, redigido por representantes dos jornais, com vista a ser aplicado pela Comissão de Queixas, mais parece destinado a um grupo de potenciais delinquentes, habituados a comerciar com a intimidade da vida privada dos cidadãos, do que propriamente a jornalistas no sentido tradicional da expressão. Lembro, por exemplo, este normativo: "Os jomalistas (...) não devem obter infommações ou fotografias através da intimidação ou causando perturbação. A menos que as suas investigações sejam de interesse público, os jomalistas não devem fotografar indivíduos em propriedade privada, sem o seu consentimento; não devem insistir com telefonemas ou perguntas às pessoas, depois de lhes ter sido pedido para desistirem; não devem permanecer na propriedade daquelas, depois de lhes ter sido pedido para se retirarem, e não as devem seguir." O incidente que causou a morte da princesa e do seu companheiro ocorreu neste contexto. Não foram ainda apuradas as responsabilidades efectivas dos fotógrafos que seguiam o automóvel de Diana e do seu companheiro na noite de Paris, mas a polémica contra os media está na ordem do dia. As declarações do irmão de Diana ("a imprensa tem as mãos sujas de sangue") e de outras figuras públicas culpabilizaram a actuação dos jornalistas. A campanha contra os media está lançada. Personalidades internacionais da política e do espectáculo já defenderam a adopção de legislação mais restritiva contra os abusos do direito à informação. No tom excessivo e desbalizado que lhe é habitual, Alberto João Jardim já afirmou que "o excesso de poder da comunicação social está a tornar-se num novo poder fascista". Esta imagem dos media como uma entidade unificada que obedece a um comando central é obviamente insustentável e caricatural. Não é justo nem razoável que a totalidade dos media e os jornalistas no seu conjunto sejam responsabilizados por aquilo que é apenas o comportamento de uma parte da imprensa. Mas isso não isenta certos jornais de pesadas responsabilidades, nem isenta os jornalistas de uma reflexão séria acerca da forma leviana como, a pretexto do "interesse público" interferem na esfera inviolável da privacidade dos cidadãos. A imagem de Lady Di que sucumbe em plena fuga às objectivas dos fotógrafos ficará registada como mais uma história mítica dos nossos dias. Dezasseis anos depois do conto de fadas da boda real, temos a novela dramática e trágica da princesa "vampirizada" pela imprensa sensacionalista. De entre as múltiplas narrativas fragmentárias que constituem, no seu conjunto, a biografia de Diana Spencer, este último episódio ficará como símbolo da tentativa de fuga da princesa apaixonada perante o "voyeurismo" colectivo representado, na circunstância, pelos "caçadores de escândalos". MÁRIO MESQUITA é Provedor dos Leitores do jornal "Diário de Notícias" (Portugal) |
* Texto publicado pelo jornal Diário de Notícias