O Dr. Pedro Camaleão candidata-se à Câmara |
Capítulo IV Página 2
-- Calma que já vais ter a resposta, e é o Paulino que ta dá. 'E o que é o Estado? Somos todos. Quem paga aos escrivães de fazenda, aos recebedores, aos juizes, aos professores, aos militares, etc. e até aos proprios ministros? O Estado, que vem a ser nós todos. Recebem os empregados os seus ordenados do thesoiro, mas o que forma o thesoiro são as nossas contribuições. O proprio administrador, o governador civil, embora sejam empregados do governo, o que é um disparate considerar tal, nem mesmo assim estavam livres para seguir estas ou aquelas ideias, conforme mais lhe agradassem. Porque o ordenado que recebem é para lhes pagar os trabalhos prestados e não para lhe comprar a sua consciencia, a sua maneira de pensar. Um sujeito tem um criado. Paga-lhe a sua soldada. Mas para quê? Para lhe recompensar os serviços que elle lhe presta e nada tem ou deve ter que elle seja franquista ou nacionalista, monarquico ou republicano, beato ou livre pensador. Cumpra com as suas obrigações o resto é com elle. Cada um está no direito de procurar que os outros acceitem as suas ideias politicas ou religiosas, por predicas, por conselhos, por propaganda, por discussão, mas não se pode obrigar ninguém a pensar tal qual como nós quisermos ou pensarmos. Mesmo é coisa que se não pode obter. Poderia alguem, por força de circunstancias obrigar-me a calar o meu modo de pensar, mas obrigar-me a mudar delle é que não, por que cá interiormente eu pensava como muito bem quizesse...' -- O homem estava era a fazer um comício, que aí não há dialgo nenhum, ó professor Vergílio... -- Nalguns diálogos acontece um pouco isso, há menos troca de palavras que noutros. Mas não te podes esquecer que é tudo ficção, afinal de contas é sempre Paulino que fala, mesmo que colocando algumas frases na boca de outrém. E essas falas, algumas perguntas ou comentários curtos, serviam para reforçar a mensagem que o autor pretendia transmitir aos seus leitores. Afinal de contas, utilizar as perguntas pretensamente ingénuas ou inocentes dos homens do povo que falavam com o senhor António para reforçar uma ideia, assinalar um determinado aspecto que o autor não queria que passasse despercebido. -- Outra coisa que eu noto é que o tal de António só fala com homens... -- Se partirmos do princípio que estas conversas tinham lugar num café ou numa taberna, sabes bem que as mulheres não frequentavam tais locais. Se ainda hoje, em algumas localidades de Portugal, parece mal as mulheres irem sozinhas ao café, vê lá bem! -- Isso só nalguma aldeia lá para trás do sol posto. E o tal Paulino bem podia estar a falar em casa de um dos outros, e aí a mulher e as filhas já podiam aparecer... -- Tens a tua razão, mas olha para o nosso grupo. Imagina que eu era o Paulino, e que resolvia passar estas nossas conversas a livro. Quantas mulheres cá metias? -- Só a Bernadete, lá isso é verdade! -- Mas que eu saiba a Bernardete não faz parte do grupo, é empregada do fastifud... -- Filha do patrão, do dono da tasca quer vocemecê dizer, se faz favor. E pelo andar da carruagem, ainda a vamos ter no grupo qualquer dia, que o Duartinho, eu tenho reparado nisso, não tira os olhos da moçoila... -- Havia de dizer isso com ele presente que afinava logo. Olha se chega aos ouvidos dos pais, que o querem bem casado com a camaleoazinha... a filha do Dr. Pedro. -- Mas quer dizer então que se escrevesse um livro não punha mulheres na conversa? -- Olha que não sei. Para seguir o políticamente correcto, deveria meter. Se fosse ficção pura, também o poderia fazer. Mas se pretendesse retratar fielmente os nossos bate-papos, aí já não o podia fazer, visto só estarmos homens à mesa. A não ser que vocês comecem a trazer as vossas esposas aqui para... D. Balbina, como vai a senhora? -- Cá vamos andando, professor Vergílio. O senhor também vai bem, que o meu marido vai-me dando notícias de si. Continuem, que eu só vim encomendar uns hamburgues e vou já para casa... |