Operação Milian

Valem muito os pequenos gestos: "Quando chegamos a um quartel sérvio, para procedermos a inspecções de rotina, a primeira coisa que fazemos é tirar a pistola que trazemos à cintura e entregá-la ao condutor da nossa viatura. Este gesto simples tem um valor incalculável para eles" -- garante o major João Teixeira. Depois há os brinquedos que vêm de Portugal, fruto da intervenção isolada de um e mais outro, e muitos militares. Também os desenhos pintados por crianças de jardim de infância português. Também os pudins, os iogurtes, os bolos e os croissants que vão sempre no jeep, porque se adivinha chusma de putos à chegada a Cajnice, Rudo ou Visegrad. A capelania-mor enviou há dias 600 contos para os militares portugueses consumirem no apoio às crianças bósnias. No quartel de Rogatica, também em Viktovici, há caixas de papelão para deixar o quinhão das rações de combate que os tropas se abstêm de consumir, a favor das barrigas tantas vezes vazias das crianças daquelas paragens.

O capitão médico Américo Sequeira trata raramente maleitas dos soldados portugueses: "Felizmente não nos têm dado problemas. É uma tropa saudável, a nossa". Mas todos os dias atende doentes locais, que o centro de saúde de Rogatica só vê médico de longe a longe, e medicamentos não há, e quando há são muito caros: "Já requisitámos a Portugal medicamentos muito caros e raros. O Laboratório Militar satisfaz os nossos pedidos com grande prontidão". A barreira da língua é transposta pelas intérpretes ao serviço da nossa tropa: "São as intérpretes que geralmente nos trazem esses pacientes, funcionam como elo de contacto, atendendo à barreira linguística. E é curioso verificar que, apesar de sermos estrangeiros e forças ocupantes, não se nota nenhum constrangimento" -- diz o médico.

Portugal vai assim marcando pontos em lugar distante, tropas portuguesas em país onde talvez nunca tenham sonhado ir em viagem turística particular, quanto mais com o estatuto de forças ocupantes. Pairarão sempre algumas sombras de complexos da guerra colonial, se calhar já pesam pouco, que nenhum dos que por ali anda terçou armas nas Áfricas. E pesará a incomodidade da justificação, os militares formados para fazerem a guerra investidos hoje na manutenção da paz. A mão cansada de refrear o gatilho talvez esconjure a frustração quando puxa o cordel que iça a bandeira das quinas. Na ressaca dos acordos de Dayton, as chefias militares logo deixaram o recado aos políticos: queriam estar presentes. A presença valeria então por evitar o estigma do oposto, a exclusão dos nossos militares de um teatro de operações europeu onde estariam neozelandeses, sul africanos, egípcios. Porque razão excluir Portugal? Ganharam essa batalha contra a exclusão, tudo o mais será valor acrescentado. Individualmente, as motivações serão as mais diversas. Há militares portugueses na Bósnia que nunca tinham andado de avião, outros nunca tinham viajado ao estrangeiro, e até há, garante o major João Teixeira, quem nunca tivesse visto neve! Há o espírito de aventura, há a sedução de evoluir num teatro real de operações, sem dúvida a milhas da guerra de papel a que a bendita paz os acantona no pequeno torrão à beira mar plantado. Há o dinheiro, ganham bastante bem, a multiplicação do salário compensará o sacrifício, por mais que o tema se pressinta tabu em grande parte dos militares com quem convivemos. E há aquele jeito peculiar de ser português, o português que se cumpre mundo fora. Mandam os ventos de alguma história que o enaltecimento da nossa presença em África, nas Índias ou Brasis se encafue no anátema do colonizador. Cá dentro das quatro paredes pequeninas, zurze-se no país e em quem o faz, a EXPO 98 não valia pelo seu valor intrínseco mas para mostrar ao mundo que os portugueses são capazes, e agora até houve um capaz de ganhar um Nobel, e se vier o Europeu de Futebol e tudo correr bem muitos arriscarão serem os portugueses capazes de aguentar mais um milénio. Lá fora, desfralda-se com mais alegria essa forma peculiar de ser português, coração de manteiga, sobranceria de grau zero, em cada estrangeiro um amigo.

Depois de ganha a batalha pela presença, ou contra a exclusão como actores do filme "Bosnia Now", o resto vem por acréscimo, e é engraçado de registar. Por exemplo, quando vemos duas tendas de artesanato montadas junto ao quartel de Viktovice. Há material genuinamente local, e há artesanato por encomenda. Os tropas pedem placas de madeira gravadas com o seu nome, a bandeira portuguesa, o escudo do agrupamento em que estão integrados. O vendedor toma nota, e promete entrega para o dia seguinte. Há um quadro atrasado: "Deixou nome?" -- pergunta o bósnio. Já fala português, tal como o seu filho, percebe perfeitamente que a caixa encomendada pelo praça luso deve levar a "Última Ceia" embutida na tampa. "Não é caro, amigo. Mais barato portugueses. Se for germano, italiano ou americano é mais caro, tem mais dinheiro esses". Fala português, o artesão bósnio, como o puto junto ao quartel de Tito Barracks, em Sarajevo, também ele vivendo das encomendas que a tropa portuguesa lhe vai fazendo.


Na foto: Criança de Cajnice segurando comida oferecida pelos militares lusos