Operação Milian

Poderia chamar-se "Operação Milian", a presença dos militares portugueses na Bósnia. Nas conversas primeiras, a bordo do C 130, ou logo à chegada a Sarajevo, notámos a dificuldade que os nossos tropas sentiam quando inquiridos sobre a bandeira que vão desfraldando: os portugueses granjeiam muitas simpatias pela Bósnia, talvez mesmo os mais populares por aquelas paragens. Qual a parte de verdade e qual o quinhão de marketing em tudo isto? Em vez do verbalizar precipitado da prova, pediam-nos paciência: "Vai ver".

Vimos, em Gorazde, o pequenito Milian ao colo da mãe, regressando de mais um tratamento no hospital local. Entraram para o jeep de matrícula portuguesa, enquanto o pai do petiz se metia em café fronteiro para mais uma charla mata-saudades com um antigo vizinho muçulmano. Milian e seus pais são sérvios, habitavam em Gorazde, os acordos de Dayton empurraram-nos para Rogatica. São refugiados a poucas dezenas de quilómetros da sua terra. Gorazde tem hoje o estatuto de "cidade aberta", o mesmo é dizer sem muros entre muçulmanos, sérvios e croatas, mas a abertura funciona quase e só no papel. À cidade, de forte predominância muçulmana, os sérvios receiam ir. Foi por isso que Milian, de 4 anos, paciente de doença congénita, desmineralização óssea, foi até ao longínquo hospital de Belgrado tratar a perna partida em Rogatica.

Curaram-no mal, por lá, a centenas de quilómetros. E o hospital de Gorazde ali tão perto. Era o medo que aumentava a distância, até ao dia em que os militares portugueses, com quartel-general em Rogatica, resolveram intervir. A criança foi operada em Gorazde, a mãe venceu o medo e ficou com o filho no hospital durante quinze dias. Milian tinha saudades do pai, a tropa portuguesa levou o homem para junto do filho, o pai logo ali encontrou vizinho de outros tempos, o calor da recepção liquefazia o medo pressentido em toda a viagem. O pai voltou, da segunda vez o tal amigo apareceu com mais uma chusma de muçulmanos: "Num primeiro instante tememos o pior, quando vimos tantos homens em direcção ao pai de Milian. Mas quando começaram todos a beijá-lo, percebemos que a amizade suplantava ali as feridas da guerra. Correu tudo bem" -- conta o capitão Mariano Alves. Hoje, Milian já não tem a perna partida, vai regularmente no jeep da tropa lusitana fazer tratamentos ao hospital de Gorazde. O pai vai também, marca encontro regular com os antigos vizinhos. O coração dos militares cuja cartilha mandará sejam empedernidos bateu mais forte, e venceu. Lembrámo-nos do avisado "Vai ver", começávamos a ver.

Os portugueses, como os militares de outros países, são força ocupante, embora com respaldo dos acordos internacionais. Ninguém gosta de divisas estrangeiras ditando ordens no seu país. A não ser que os galões tenham forma de coração. E têm. E é aí que a tropa portuguesa joga os seus trunfos, é aí que compete com a opulência das outras forças da NATO. O ferrete de "ocupante" fere mais quanto mais se exibirem forças e sobrancerias. Pode ser no capacete, ou no corpo bojudo que denuncia colete à prova de bala. Os portugueses raramente trazem tal indumentária posta, colete e capacete andam no saco, postos só em caso de necessidade. A frota motorizada também não ostenta sobranceria; bem pelo contrário, deixa aos bósnios o sinal de que não somos lá assim muito ricos, e quanto menos ricos nos mostrarmos, mais iguais nos tornamos.


Na foto: Milian com a mãe, no jeep das tropas portuguesas