Princesas e Rainhas

João Luís Marques dos Santos

O Litoral

18/09/97

Os necrófagos amansaram. Agosto prometia ser um mês em cheio. Um segurança embriagado oferecera-lhes um pitéu de luxo, a que se atiraram como piranhas. Banquetearam-se à fartazana e o festim prometia nunca mais acabar, porque esta espécie, apesar do voraz apetite, tem o condão de fazer render a presa eternamente. Foram fotografias de página inteira, dias a fio. Foram milhares de horas de transmissões televisivas. Foram milhões de pessoas a abandonar casas, famílias e afazeres e a correr para um local que devia ser de recolhimento e passou a ser de sacrifício, atraídos pelos profissionais da organização deste tipo de eventos.

Mas o destino tem coisas estranhas. Preparavam-se os média para eternizar o show, preparando o terreno para os vendedores de recordações e de publicações e novelas romanescas, quando, do outro lado do mundo, uma frágil velhinha que dedicara toda a sua vida ao serviço dos pobres resolveu estragar-lhes a festa. Morreu. E lançou o pânico nas hostes. Que iam, agora, fazer os vorazes aproveitadores da morte da princesa? MadreTeresa era, igualmente, embora por razões bem diversas, uma figura pública mundial. Nunca viveu em palácios, hotéis ou iates de luxo. Vestidos que valiam fortunas e jóias dos mais caros joalheiros mundiais faziam parte de um mundo que, por opção, não era o seu. Na verdade nunca teve nada de seu. Tudo o que lhe chegava era para ajudar os pobres. Era a má consciência de todos nós. Nunca utilizou ninguém e muito menos os meios de comunicação social, que também a não perseguiam nem procuravam. Ao contrário da princesa que usou os media com uma mestria que é a vergonha de qualquer político com ambições (Soares à parte).

Contrariamente ao que muito boa gente pensa e nos querem fazer acreditar, fez deles, sempre, o que quis, o que, aliás, ninguém pode censurar-lhe. Tornou-se o general do mais poderoso exército do mundo. Fez com que milhares de jornalistas, pura e simplesmente, deixassem de pensar. Foi o mais espantoso e seguramente irrepetivel fenómeno de hipnose colectiva. Tudo isto com uma simplicidade estonteante. Exibindo um sorriso simpático e um cenário em que nada faltava das coisas boas da vida. Aquilo com que, afinal todos sonham. A face iluminada da lua. A face escura, onde quase tudo é mais real, ficou para a velhinha de Calcutá, que cedo renunciou a todos os prazeres frívolos do mundo. Usou, sempre, o mesmo hábito. Não teve quaisquer outros bens materiais. Se os tivesse tê-los-ia dado todos aos pobres e continuaria ela própria pobre. Viveu, permanentemente, junto dos doentes e dos mais desfavorecidos. Dos esquecidos do resto do mundo. Isto apesar de ter perfeita consciência de que o seu apostolado era, apenas, a pequenina gota de água e que a luta em que se empenhou não terá fim enquanto milhões de pesscas tiverem como centro das suas preocupações o assistir ao funeral de alguém de quem apenas ouviram contar histórias e viram imagens nos jornais e televisões.

Devotar uma vida exclusivamente a ajudar os pobres num mundo estruturado nesta hierarquia de valores é uma versão moderna do mito de Sisifo. Madre Teresa sabia-o e nunca desistiu. Teria morrido como viveu, sem grandes atenções dos media se estes não estivessem a viver uma bebedeira colectiva. Nos círculos mais sérios da imprensa internacional a morte de Madre Teresa caiu como um verdadeiro antídoto. Chamou-os à realidade. Os outros apanharam um valente soco no estômago, mas como não vivem de piedosas intenções vão recuperar rapidamente. Irão esgotar o filão. Depois há já um inocente princepezinho no horizonte. Parafraseando Frei Bento Domingues diremos: que a alma de Madre Teresa (n)os não deixe em paz.

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