Diana ou o anel de Moebius

António Guerreiro*

Expresso 06/09/97

Num dos seus fragmentos satíricos em que o jornalismo é visto como uma grande comédia, Karl Kraus, esse grande escritor vienense do princípio do século, falava de uma reversibilidade em que 'os factos produzem notícias e as noticias são culpadas dos factos'. Mesmo com o seu brilho retórico, uma tal fórmula, hoje, já só consegue ter o esplendor banal de um evidente estado de coisas que em grande medida a superou, evoluindo para o seu ponto de saturação -- o ponto em que o sistema cria o acidente.

O acidente, rigorosamente literalizado e vivido à escala planetária com todos os ingredientes de uma tragédia moderna, foi aquele de que a princesa de Gales foi vítima. Uma tragédia onde a força inevitável do destino ou a mão anónima de Deus são representadas por umas entidades que pairam sobre todas as coisas e também têm o poder de ver as suas criaturas sem serem vistas, ainda que à custa de poderosas próteses ópticas. Começou aí um processo movido (pela opinião pública, pelo poder político, pelos próprios jornais) aos chamados 'paparazzi': com a sua voracidade sem escrúpulos, eles não dão descanso às suas vítimas, chegando mesmo a empurrá-las para a morte como tinha acabado de acontecer. Tendo-se entrado numa lógica que consiste em nomear culpados imediatos e em procurar causas e efeitos identificáveis por toda a gente, as coisas acabaram por se revelar bastante mais complexas. Aos que se tinham apressado a culpar os 'paparazzi' vieram outros lembrar que estes são apenas uma das peças da grande máquina circulatória deste mercado de imagens, dominado pelas empresas de revistas e jornais da especialidade. Ao que foi necessário acrescentar, por sua vez: essas revistas e jornais são alimentados pelo público, que os compra aos milhões e que agora não percebe ou faz que não percebe (falou-se abundantemente em hipocrisia) que a 'sua' princesa, enquanto tal, só existiu por obra e graça dos indivíduos e dos métodos que agora são acusados de a terem matado.

Nesta indecidível partilha das culpas, que podem tornar-se mais leves ou pesadas ao sabor das simpatias, o que se tornou claro, mas nem por isso convictamente afirmado, é que o sistema se tornou uma espécie de anel de Moebius, sem interior nem exterior, em que todos são simultaneamente vítimas e cúmplices. Por isso, como na fábula do ovo e da galinha, os 'media' poderão sempre dizer que não são responsáveis pelo lixo cultural e informativo que propagam, que se limitam a responder aos desejos do público e a reflectir a irresponsabilidade que se tornou o modo de solidariedade colect iva . Por sua vez, este 'lixo' oferece-se com uma tal concupiscência e está sujeito a um regime de circulação tão impositivo que se transmite como um vírus; consumi-lo já não pode ser objecto de uma decisão consciente. É impossível suspender este processo vertiginoso a partir do momento em que a 'démarche' dos 'media' deixa de ser ideológica para passar a ser puramente funcional. Os 'paparazzi' são os profissionais de risco dessa pura funcionalidade, figuras extremas de um sistema cuja lógica invadiu todo o campo dos 'media', tornando quase anedótico o processo que a Imprensa dita 'séria' resolveu agora mover à Imprensa de sensação e às revistas de sociedade.

Enquanto valor em si, a exposição mediática transformou a política e toda a vida social numa fantasmagoria espectacular. E, como se percebeu no rescaldo da morte da princesa Diana, é a figura da reversibilidade que domina, e já ninguém detém a soberania do seu próprio jogo, que por isso mesmo se revela fatal: quem persegue quem quando os perseguidores, afinal, são condicionados pelos perseguidos? Como podem a opinião pública e os poderes relvindicar uma moralidade editorial sem que a acusação de imoralidade seja imediatamente devolvida? Como é possível que um mundo separado e organizado através dos 'media' conheça regras exteriores a eles?

* Texto publicado no Caderno "CARTAZ" do Jornal "Expresso" (Portugal)

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