Lady Die

António Pinto Leite*           Expresso 06/09/1997

«SOU um produto que vende», dizia impotente a princesa Diana. Foi esta frase vulgar que a matou. Não foram aqueles «paparazzi», em concreto, que a mataram. A princesa Diana foi vítima de um tempo, de uma cultura, de uma civilização. Foi vítima do consenso bizarro acerca do uso da liberdade de que todos somos responsáveis. Foi vítima de uma sociedade mediático-idiota em que vale tudo. E foi vítima da lógica mais obscena do capitalismo, do dinheiro alcançado sem escrúpulos, destruindo pelo caminho o que for preciso. Comecemos por aqui: fotografar a princesa num beijo romanesco valia dezenas de milhares de contos, sabe-se agora, que talvez centenas de milhares. Esta bisbilhotice, impunemente mascarada de jornalismo, tem mercado -- ó glória civilizacional suprema! -- tem mercado, «vende»!

Não é o interesse público, nem a paixão de informar, nem sequer o prazer de ser bisbilhoteiro que move esta gente, é, simplesmente, inesteticamente, o dinheiro. Também não é a devoção pelos mitos que os move. Diana era um bem de consumo mediático, um produto como outro qualquer e como tal era gelidamente tratada. Se tivesse sobrevivido ao desastre e ficado deficiente nunca mais ninguém a fotografaria. Seria ela, certamente, com aquela ironia triste que a distinguia, a primeira a dizer, «sou um produto que já não vende». Tudo isto é, numa lógica de respeito pela dignidade da pessoa humana, chocante. Quando os seres humanos são concebidos como latas de coca-cola e assim são tratados, para tanto se lhes atormentando a vida e arrasando o equilíbrio dos seus filhos, é a sociedade no seu todo que está em causa. Criámos uma sociedade mediática, inevitavelmente massificante e, por isso, com uma dimensão necessariamente idiota. O problema é que quase todos somos cúmplices disto e poucos são os que, ao menos, guardam o espírito crítico.

Convenhamos, se o Mercedes de Diana não se tem despistado, nenhuma inquietação sincera ocorreria à maioria sobre a tortura de que ela era diariamente vítima. Poucos se preocupariam também com os filhos, miúdos como todos os miúdos, tudo isto apesar dos desabafos sucessivos e tentativas de suicídio da própria princesa. Convenhamos mesmo mais: se o Mercedes não se tivesse despistado teria sido para muitos um regalo saber onde a princesa Diana teria passado a noite. Sejamos crus: a morte de Diana começa no lado mais primário e alarve dos seres humanos, lado em que alguns mestres do negócio, alguns mestres do mercado dos «media» brilhantemente manipulam.

A questão central é a de uma sociedade que criou um poder novo extraordinário -- os «media» -- e, ao mesmo tempo, está cada vez mais inibida na definição de valores básicos de convivência social. O relativismo moral, coroa de glória do individualismo, transformou este nosso tempo num tempo irresoluto, amedrontado e, como agora ficou brutalmente evidenciado, injusto, profundamente injusto. Limitar o direito à informação, limitar a devassa da vida das pessoas, será tido como um «liberticídio», um atentado à liberdade, não é politicamente correcto, mas é essencial, em nome da mais elementar sensibilidade humanista. A sociedade moderna usa como álibi o facto de se tratar de figuras públicas. A tragédia foi tão cruel que nem esse álibi resistiu. Pobre civilização a nossa, se perde a noção do preto e do branco, do bem e do mal. Triste sorte a dos homens, se o capitalismo triunfante e sem concorrente do século XX não conhecer firmes limites morais e sociais no século XXI.

Que fracasso cultural o nosso, se a cartilha dos direitos humanos tomar o direito à privacidade e ao equilíbrio familiar, à imagem ou ao bom nome como direitos menores. Segundo parece, existem fotografias da princesa Diana moribunda e desfigurada no automóvel. Uma fotografia mórbida destas vale uma fortuna. Mas quanto vale o direito da princesa a preservar a imagem bonita que dela todos temos? Quanto vale a dignidade de um ser humano? Quanto vale a última imagem desta mãe no sofrimento daqueles filhos?

Convenhamos: se o Mercedes não se tivesse despistado teria sido para muitos um regalo saber onde a princesa Diana teria passado a noite.

*Texto de opinião publicado na 'Revista' do semanário "Expresso" (Portugal)

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