da Folia
Dinis Manuel Alves
A IMINÊNCIA DA FESTA O que mais queria, antes de traçar a primeira palavra deste texto mas já dentro do ambiente gerado pela narrativa fragmentada que estes imagens constituem, era obedecer menos ao narrativo do que ao fragmento e menos ao que une os fragmentos do que à zona escura que os separa — lugar minimal de afirmação de um devaneio, distracção inclinada entre o visto e o imaginado. Gostaria
de prender a escrita ao registo de uma oscilação: entre a festa e a
folia. A folia é distracção, por vezes intensa.
É um intervalo de que-fazeres compulsivos. Um parêntesis que permite
regressar ao trabalho, se não descansado pelo menos reciclado da repetição,
do hábito, da obrigação alheia ao prazer dos gestos. Ousaria sugerir
que, na folia, a Ordem se retempera, que a Ordem precisa da folia para
desenvolver os seus argumentos, as suas decisões, as suas finalidades. A
festa é a dissolução da Ordem até à instauração do caos. Há ainda
um princípio de sensatez — um princípio de ordenação narrativa —
na folia. Mas na festa, como nas revoluções (dizem os clássicos e sabem
todos aqueles que viveram revoluções), tudo — gostos, relações,
passados, sentimentos, leituras, imaginações, futuros, fórmulas — é
elevado ao plano geral do acampamento, estado de sítio afectivo, partida
múltipla de um xadrez enigmático que faz as regras jogando, sem saber ao
certo o valor das peças. Nestas imagens, o elemento interpelante mais
agudo para o olhar que lhes disponibilizei é detectar a iminência de
festa nas fixações da folia. Sentir que, no momento seguinte, toda a
cena de dissolverá numa indeterminação que não é susceptível
de imagem, pelo menos de imagem fiel à intensidade do que se está a
viver. Ou sentir, numa imagem, que é a primeira imagem de uma cena
que se recompôs. Nenhuma imagem nos restitui,
integralmente, todo o campo da sensação. Mas naquelas em que o salto está
a formar-se, em que uma espécie de vertigem está prestes a
conquistar-nos ou já nos libertou do seu voo incandescente, nessas
imagens encontramos um elemento, um detalhe (p. ex.: os sapatos enlameados
de um par sem rosto), que abre o real sem o repetir. Nenhuma imagem precisa de mais
tempo do que aquela que se nos propõe animada da ambição de documentar.
Porque, como em todo o real, também nelas habita o ponto negro, luminoso,
em que pressentimos a iminência da transfiguração. António Pedro PitaDezembro 2000 |